31 outubro, 2007

You Make Me Feel Brand New - Simply Red (clica aqui)

Only you
Came when I needed a friend
Believed in me through thick and thin
This song is for you
Filled with gratitude and love

Cada coisa


Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

(Ricardo Reis)

só porque me apetece

Tenho saudades de ouvir a tua voz tenho saudades das nossas conversas tenho saudades de te olhar tenho saudades de te tocar tenho saudades de não ter saudades, sabes?
Concluí hoje que sonho com as pessoas de quem posso vir a ter saudades... não me lembro da última vez que sonhei contigo muito menos do que sonhei... os outros sonham com os que amam eu sonho com os que me rodeiam todos os dias, julgo que para ter a certeza que hão-de permanecer no meu dia a dia na minha vida...
Gostava de ter saudades de ti... ter saudades de verdade não esta mentira que invento para fingir que tenho saudades... não tenho... são poucas as pessoas de quem tenho saudades de verdade. Muito poucas. Quase não existem na verdade...
apetece-me agora penso, deixar de usar maiúsculas. assim de repente não me apetece, como não me apetece muitas vezes usar pontuação, como não me apetece sair deste hospital psiquiátrico onde me enfiaram depois de ter promovido um motim na cadeia... e promovi o motim só porque me apeteceu só porque me chateei com os guardas, só porque não quero ouvir mais o médico da cadeia acabado de sair da faculdade tecer teorias acerca do que me levou para ali. trouxeram-me então para aqui e não é que não goste disto eu até gosto de estar no meio de loucos, sinto-me menos louco e depois espero vir a ter saudades de verdade de ti, do teu cheiro da tua voz do teu cabelo nas minhas mãos. acho que um dia hei-de ter saudades e então hei-de matar-te outra vez para voltar a ter saudades. tuas.

30 outubro, 2007

The Thrill Has Gone - Tracy Chapman & BB King (clica aqui)

You know I'm free, free now baby
I'm free from your spell
Oh I'm free, free, free now
I'm free from your spell
And now that it's all over
All I can do is wish you well

A criança que ri na rua


A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo

(Fernando Pessoa)

E se...

E se o escritor escrevesse um romance e quisesse depois viver a estória que tinha escrito... E se o escritor dissesse que uma mulher de olhos grandes vê mais e melhor do que outra com olhos normais? E se o escritor fosse constantemente perseguido por um anjo da guarda que toma várias formas, mas sempre na forma de uma mulher, seja ela de que raça for... E se o escritor decidisse que afinal o que tem para viver é a vida do seu pai... E se o escritor não acatasse a decisão da comunidade e não casasse com a mulher que lhe destinaram mas com a sua mãe louca...
E se tudo o que o escritor tem cabe dentro de uma mala... se o escritor diz que não pode ter mais do que uma mala ou o barco vai ao fundo... e se o escritor nos diz que o que se junta na vida são algumas verdades e muitas mentiras... se o escritor nos diz ainda que quem lê se torna um perigoso assassino... e se o escritor regressa à sua terra natal, para ver o lorosae, do lado de lá do mundo e não reconhece a sua gente... se o escritor foge para os braços da mulher que o ama mas que o mandou procurar a mulher que está escrita no seu destino...
Se o escritor é arrancado de Santiago de Compostela e não encontra Finisterra?
Então podemos entrar no romance de Luís Cardoso, A última morte do coronel Santiago, e dar com ele a volta ao mundo sem sairmos do mesmo lugar...

29 outubro, 2007

Offer - Alanis Morissette (clica aqui)


Who
Who am I to be blue
Look at my family and fortune
Look at my friends and my house

Breve o dia


Breve o dia, breve o ano, breve tudo.
Não tarda nada sermos.
Isto, pensado, me de a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que mágoa, é vida.

(Ricardo Reis)

Muito porreiro, pá.

Este bebé que ri com tanto gosto é meu neto e nasceu em Itália, filho de mãe italiana. Como qualquer criança foi registado segundo as regras do país, ou seja, nome próprio e apelidos apenas do pai. Todos. Mas só do pai.
Acontece que o meu filho anda há imenso tempo para tentar que o bebé tenha um nome à portuguesa, ou seja, nome próprio, apelido da mãe e apelido do pai...
De vez em quando o meu filho vem a Portugal, uma vez que tem cá um filho mais velho que vive com a mãe... e hoje apareceu-me com uma quantidade enorme de papéis da Prefeitura de Milano. Para quê? Para que toda a família dê autorização para que a criança mude de nome. Por cada pessoa que tem que assinar há 4 papéis... é claro que só me apetece perguntar se os vizinhos também têm que dar autorização para que a criança mude de nome.
É claro que o puto ri... até eu me sinto, depois disto, num país completamente desburocratizado. E para que não digam que venho aqui só para dizer mal do José, hoje estou aqui para dizer ao José que o simplex é porreiro... muito porreiro pá... como ele gosta de dizer.

28 outubro, 2007

Happy Birthday - Stevie Wonder (clica aqui)


Happy Birthday to you!

Aniversário

(Para o EGV como tudo o que hoje aqui é publicado)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração!
Não penses!
Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
(Àlvaro de Campos)

Parabéns amigo!

O meu amigo EGV faz hoje anos... ou fez. Nunca perguntei a que horas nasceu. Seja com for. Juntou 170 amigos para festejar com um almoço no Badoca Parque 50 anos de vida. Ou como diria o José cinquentaeanos!
E que bom que é rever os amigos. As colegas do liceu em Luanda, os amigos dos Açores, e depois os mais recentes de norte a sul do país, aqueles que se vão fazendo ao longo do tempo, alguns até muito recentes mas com quem tenho tantas afinidades apesar de todas as diferenças, a começar pelos sotaques cerrados... uma delícia de dia.
E depois EGV escolheu realmente muito bem o sítio. Um cantinho de África está ali e o parque que eu vi nascer e quase morrer, parece estar agora de boa saúde, se bem que realmente não entenda muito bem porque não são permitidos os bungalows... parece-me que seria uma aposta turística bastante interessante, numa zona em que as praias não podem competir com o Algarve pela diferença de temperatura, quer do ar quer do mar... mas pronto, eles devem saber o que fazem... eu sei que gostei de passear a pé e de tractor pelo parque... estou à espera que a máquina carregue um pouco de bateria para postar uma das fotos que lá fiz hoje...
E pronto: de pois foi o caminho de volta com muito trânsito mas sempre a andar, foi o atravessar a Vasco da Gama que é a minha ponte preferida e ver do lado de cá Lisboa mulher da noite, completamente iluminada...
Quero aqui deixar mais um abraço bem apertado para ti, amigo de sempre, amigo de todas as horas, amigo a quem eu quero todo o bem deste mundo e do outro...
Beijos também para ti... que para o ano possamos estar todos juntos de novo. Porque tu estás renascendo todos os dias... sou eu que te garanto e tu sabes do que eu estou falando...
Um dia muito "requinho" como diz a nossa amiga Angelina.

27 outubro, 2007

De uns tempos pra cá - Chico César (clica aqui)

Coisas são só coisas
servem só pra tropeçar
têm seu brilho no começo
mas se viro pelo avesso
são fardo pra carregar

Abdicação


Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
(Fernando Pessoa)

Gosto de me sentir bem, assim...

De há uns anos para cá tenho vindo a libertar-me de coisas que não me fazem falta. Coisas que, a bem dizer, nunca me fizeram falta, mas que eu cheguei a pensar que eram importantes. Pois bem, não são.
Hoje ao fazer a mudança de roupa de verão para o inverno libertei-me de mais uma série de peças. De verão e de inverno. Na realidade não percebo como fui capaz de juntar tanta roupa ao longo dos anos... e porque é que comprei coisas que nunca usei. Pior: coisas que comprei sabendo que não usaria, tais como uns sapatos de salto agulha de 15 cm de que me desfiz há uns anos sem nunca ter calçado... que comprei, sabendo que não calçaria nunca.
Não sei se a vida nos ensina, mas creio que não ensina toda a gente da mesma maneira, pois tenho amigas que não são capazes de se libertar de coisa nenhuma. Têm armários atafulhados de roupa, mudam para casas maiores por causa da falta de espaço com que ficam por não se desfazerem de nada. Porque pode ser que voltem a emagrecer, porque pode ser que ganhem mais uns quilos, porque pode ser que volte a estar na moda... os argumentos são os mais variados e todos válidos, pelo menos para elas...
Eu estou muito satisfeita por ter o guarda roupa com montes de espaço... ainda assim, acho (tenho mesmo a certeza!) que não vestirei tudo o que lá deixei... na próxima mudança de estação darei mais algumas peças, daquelas que não visto nunca e que dou completamente novas... e voltarei a sentir esta sensação de bem estar que é não ter coisas que não me fazem falta...

26 outubro, 2007

Thank U - Alanis Morissette (clica aqui)

Thank you India
Thank you providence
Thank you disillusionment
Thank you nothingness
Thank you clarity
Thank you thank you silence

Andavam de noite

Andavam de noite aos segredos
Só porque era noite...
Os bosques enchiam de medos
Quem quer que se afoite...

Diziam [?] palavras que pesam [?]
À sombra de alguém...
Ninguém os conhece, e passam...
Não eram ninguém...

Fica só na aragem e na ânsia
Saudade a fingir...
Foi como se fora distância...
Eu torno a dormir.

(Fernando Pessoa)

Volta sempre Vladimir.

Entre o José europeu de Bruxelas e o José português da Covilhã, caminha o Vladimir. É um bom rapaz este Vladimir, portanto não me admira a recepção que lhe foi proporcionada por este meu país... acolhedor! Muito acolhedor. Tão acolhedor que transtorna a vida de quem quer que seja para acolher o Vladimir...
O Vladimir é muito bom rapaz. Tão bom rapaz que usou todos os meios a que tinha direito para se proteger... por ser tão bom rapaz, tá-se mesmo a ver que precisa de muitos guarda costas e etc., etc., etc. É claro que não bastavam os esforços das forças de segurança portuguesas para garantir a sua integridade física... porque a sanidade mental está tão afectada que tenho a certeza que o nosso escritor e psiquiatra, esse mesmo, o António, não daria conta deste recado... E olhem que ele deu conta da Elisabete que não é um osso fácil de roer, nem para a família, nem para os colegas, nem para os amigos... se é que ela tem amigos... deve ser como o Vladimir e só tem mesmo é inimigos... o que se passa é que o Vladimir tem com certeza o mesmo problema de Elisabete, ou seja, a mania da perseguição... só que ela não tem dinheiro nem para um guarda costas e quando se dirigiu à esquadra da PSP mais próxima a pedir ajuda mandaram-na dar uma volta... com certeza a ver se espairecia os seus terrores...
O Vladimir é muito bom rapaz e hoje emocionou-me de verdade... gostei de ver o rapaz ali, entre dois Josés a defender que se criasse um instituto para a defesa dos direitos humanos... fiquei muito sensibilizada...
Quem parece que não achou muita graça às circunstancias foram os visitantes do oceanário que foram obrigados a interromper a sua visita (paga previamente pois claro!) para que o Vladimir fosse ver as lontras e as garoupas... ah! e os caranguejos do Japão que qualquer dia só se encontram em Portugal...
Volta sempre Vladimir.

25 outubro, 2007

Índia - Gal Costa - (clica aqui)

Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer-lhe adeus
Fique nos meus braços só mais um instante
Deixa os meus lábios se unirem aos seus
Índia, levarei saudade
Da felicidade que você me deu

Acima da verdade


Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.

(Ricardo Reis)

Para sempre já não é tempo demais

Ambas pensámos em ti, estou certa. Nenhuma de nós falou. Como se por não falar a dor deixasse de existir. Ambas sabemos que não é assim mas foi assim que estivemos falando das nossas vidas, dos nossos mortos, dos nossos anjos da guarda, dos amigos que continuam a dar-nos conselhos depois de terem partido há tanto tempo.
Eu que não acredito em nada por muito que veja, por muito que sinta e tu que não acreditas em nada por muito que os ouças... ambas respeitando as crenças de cada um e de cada uma de nós...
Amanhã tu, a que não estás aqui mais, fazes anos e eu não quero deixar passar o dia sem que tu saibas que eu não esqueci... só que amanhã hás-de ir almoçar com a tua família, talvez para a Ericeira e eu não gosto de te falar quando estás na companhia dos teus, não quero interromper a tua alegria, não quero intrometer-me nesses espaço que tão bem criaste e de que sempre cuidaste tão bem... como ninguém eu acho e devo dizer-te que admiro essa força de criar coisas boas à tua volta, essa capacidade que tens de fazer com que tenhamos saudades de ti.
Por isso hoje e aqui neste meu sítio, dou-te os parabéns por mais 1 ano. Sabes que não me sinto feliz como sentia há 1 anos porque nessa altura sabia que brevemente estarias de volta apesar da doença, apesar dos diagnósticos, apesar dos sustos eu sabia que em breve estaríamos a rir de tudo... hoje continuo a saber.
Eu e a filha de Pepe. Nós sabemos que tu estás connosco sempre. Para sempre... porque agora e aqui, para sempre já não é tempo demais.

24 outubro, 2007

Ruby - Ray Charles (clica aqui)

They say, Ruby you're like a flame
Into my life you came
And though I should beware, still I just don't care
You thrill me so, I only know
Ruby, it's you

I hear your voice and I must come to you
I have no choice, what else can I do ?-what can I do?

Ah, a frescura na face de não cumprir um dever!

Ah, já está tudo lido,
Mesmo o que falta ler!
Sonho, e ao meu ouvido
Que música vem ter?

Se escuto, nenhuma.
Se não ouço ao luar
Uma voz que é bruma
Entra em meu sonhar

E esta é a voz que canta
Se não sei ouvir...
Tudo em mim se encanta
E esquece sentir.

O que a voz canta
Para sempre agora
Na alma me fica
Se a alma me ignora.

Sinto, quero, sei que
Só há ter perdido -
E o eco de onde sonhei-me
Esquece do meu ouvido.

(Fernando Pessoa)

Só por ler Hemingway

Senta-se à minha frente e olha-me com um ar muito assustado. Penso até que vai chorar. Terá 13 ou 14 anos. Deita olhares assustados ao rapaz que se sentou ao meu lado. Olho para o lado e parece-me que há parecenças entre os dois, depois olho para o rapaz sentado ao lado do miúdo e reparo que é um miúdo muito bonito, com um cabelo encaracolado bem cortado e torno a olhar o rapazinho. Fico sem saber o que pensar. O tipo que está ao meu lado não parece ter nada a ver com o miúdo apesar das parecenças... de resto só o vejo de perfil, é difícil perceber se estou certa... o metro pára na estação seguinte e o miúdo sai acompanhado do rapaz de cabelo encaracolado. O que está ao meu lado fica.
Começo a pensar que o miúdo me quis dar algum sinal. Mas não estou preocupada. Acho difícil ser assaltada enquanto me mantiver ali sentada.
Sentam-se então à minha frente dois homens indianos com ar de mafiosos. O que está no lugar que era do miúdo usa óculos escuros e o outro uma gargantilha e brincos a condizer... imitam ouro mas são pechisbeque. É estranho mas sinto-me muito segura com aqueles dois à minha frente. Como se fossem os meus guarda costas (neste caso frente) e o tipo ao meu lado não pudesse já causar-me qualquer dano.
Algumas estações depois os indianos saem e volto a sentir-me abandonada. Mas senta-se à minha frente um homem com um ar frágil. Lê um livro de Hemingway, não consigo ler o título mas volto a sentir-me segura apesar do ar frágil do homem. Afinal ele lê Hemingway, não é?

23 outubro, 2007

A minha alma - Maria Rita (clica aqui)

As grades do condomínio
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida.
e é você que está nessa prisão

Me abrace, me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe
Sentar na poltrona
Num dia de domingo

Minha camisa rota


A minha camisa rota
(Pois não tenho quem me a cosa)
É parte minha na rota
Que vai para qualquer cousa,
Pois o estar rota denota
Que a minha [...]
Para muita coisa de volta.
Mas sei que a camisa é nada,
Que um rasgão não é mal,
E que a camisa rasgada
Não traz a alma enganada,
Em busca do Santo Graal
(Fernando Pessoa)

O menino que quis ser deus.

Já tenho 5 anos, sou um rapazinho, como tudo porque quero crescer e ter muita saúde. Não quero ser como o meu primo Pedro que está sempre doente porque não come.
Quando eu era pequenino queria ser deus... mas depois a minha tia disse-me que se calhar não era muito boa ideia, que ser deus dava uma grande trabalheira, que deus não tinha sábados nem domingos, é assim como ter que ir à escola todos os dias e nunca podia ter férias nem ia ter tempo para estar com ela... então pensei melhor e achei que ela tinha razão e que ser deus se calhar não era assim uma grande ideia...
Pois. Mas eu o que quero mesmo muito muito, é ter uma mana para poder brincar com ela. É que os meus primos vivem muito longe e eu nunca posso brincar com eles, só no natal e assim... portanto pedi à minha mãe uma mana. A minha mãe gosta muito de mim e dá-me tudo o que pode. Às vezes eu peço coisas que ela não me pode dar e então eu espero para pedir à minha avó ou à minha tia, ou assim... ou então espero só que ela me possa dar... parece que uma mana tem que ser a minha mãe a dar-me, foi o que percebi mas não sei se percebi bem, porque a minha mãe falou-me numas sementes que eram precisas para fazer nascer a minha mana e eu não percebo porque é que ela não as vai comprar como compra as sementes daquilo que semeia no quintal...
A minha mãe disse que eram umas semente muito caras e que agora não podia, não tinha dinheiro para as comprar... mas eu sei, quando ela puder compra e eu vou ter uma mana para poder brincar comigo.

22 outubro, 2007

Enquanto houver sol - Titãs (clica aqui)

Quando não houver saída
Quando não houver mais solução
Ainda há de haver saída
Nenhuma idéia vale uma vida
Enquanto houver sol, enquanto houver sol

Ainda haverá
Enquanto houver sol, enquanto houver sol

A criança que ri na rua


A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -
Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo
(Fernando Pessoa)

A careca do meu tio da América

Como dizia aqui ontem quando conheci o meu tio da América ele já era careca. Depois a conversa seguiu outro rumo mas como eu não sou mulher de voltar atrás no que quer que seja , deixei que seguisse o seu rumo que foi aquele que os meus dedos escolheram... a ver se hoje a cabeça manda alguma coisa... a ver.
Há 27 anos eu vivia nos Açores e vim ao continente para ter o meu filho mais novo, não porque tivesse receio de o ter lá (os dois mais velhos nasceram em Ponta Delgada), mas porque estava absolutamente sozinha e não tinha ninguém em quem confiasse completamente para cuidar dos dois mais velhos que tinham 3 e 1 ano respectivamente.
Acontece que enquanto eu estava cá de licença de parto, o meu tio João da América veio a Portugal e, por coincidência, morreu nessa altura, uma tia muito muito velha mas que se encontrava completamente lúcida e vivia sozinha. Não sei que idade tinha quando morreu, porque sempre a conheci muito velha (quando lhe perguntava que idade tinha, não passava nunca dos 82!) e muito sovina. Dava-me dinheiro e dizia-me para não contar ao meu irmão porque ela não tinha mais... a verdade é que a mulher tinha casado da primeira vez com um homem mais velho que ela 40 anos e que a deixou tão bem na vida, que logo que enviuvou casou com outro mais novo que ela 20 anos e a verdade é que também deste enviuvou, tendo-se conservado viúva ainda por uns anos até morrer... e aqui vou eu a fugir outra vez da careca do meu tio... isto é que é uma vida!
Pois a minha tia morreu e lá estávamos nós no funeral que se realizou em Almada onde a "velha" como todos lhe chamávamos se realizou. Foi mais ou menos no fim do Outono e estava um dia de muito vento. Eu ainda não tinha tido a oportunidade de estar com o meu tio da América, quando de repente vejo alguma coisa a voar literalmente da cabeça de um homem e então reconheci-o! O meu tio João saiu disparado atrás do capachinho que lhe fugia e foi um custo apanhá-lo, ai se foi!
Quando voltou a Portugal, tinha feito um implante de cabelo que estava muito bem feito, mas eu recordo sempre o meu tio da América, o tio João das férias da minha infância, careca como quando o conheci.

21 outubro, 2007

Não há Estrelas no Céu - Rui Veloso (clica aqui)

Não vês como isto é duro, ser jovem não é um posto,
Ter de encarar o futuro com borbulhas no rosto.
Porque é que tudo é incerto, não pode ser sempre assim,
Se não fosse o Rock and Roll, o que seria de mim?

Acaso


No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal... Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.




(Álvaro de Campos)

Eu nunca disse que sou boazinha




Quando conheci o meu tio da América ele já era careca. Eu achava piada ele ser tão parecido com a minha tia (irmã mais nova dele) que tinha uma linda cabeleira... o tio João era o mais novo de 3 irmãos dos quais a minha avó paterna era a mais velha. E ele vinha muitas vezes a Portugal ver as irmãs e o resto da família. Mas um dia resolveu convidá-las para irem aos esteites. Lá foi o meu pai levá-las ao aeroporto e elas passaram cerca de um mês por lá. Íamos tendo notícias por telefone. O tio João desdobrava-se para lhes mostrar o que de mais bonito e de melhor se fazia em NY e arredores.
Levou-as pois a um concerto de Frank Sinatra. Não é que eu alguma vez tenha sido uma grande admiradora do Frankie, mas havia nele qualquer coisa de mafioso, as estórias que se contavam a seu respeito que me encantava... nunca apreciei os homens muito certinhos e é por isso que não me queixo do que me tem calhado em sorte... pende-me o coração para esse lado mais escuro eu que sou tão transparente e tão cumpridora... busco certamente o equilíbrio. Pois sabem o que a minha avó me disse quando chegou a Portugal sobre o concerto? Ela que nunca tinha ido a sítio nenhum semelhante nem em Portugal, nem no mundo, nem nos arredores... Pois o que a minha avó me disse foi que "aqui também temos gente que canta muito bem". E ponto final no assunto. Quanto ao resto da viagem para além de lhe merecer um comentário semelhante, "cá também temos coisas muito bonitas", nunca mais disse uma palavra... A minha avó viveu a vida toda obcecada com o trabalho e com o "mando" como ela dizia. No dia em que foi atropelada e ficou bastante mal, alguém aproveitou para lhe tirar o "mando" e ela nunca mais se recuperou completamente... levou alguns 20 anos a morrer... chamava-nos (aos filhos e netos) de vez em quando para se despedir porque ia morrer... nos últimos amos já ninguém aparecia porque pensámos que ela era eterna. Afinal enterrou dois netos, um filho, os dois irmãos... e morreu ao 99 anos sem se despedir de mingúem...
Não tenho saudades desta minha avó. Era uma mulher distante e ríspida o que não é comum na família e que passava a vida a dizer "eu nunca disse que sou boazinha"... essa frase foi a única herança que dela me ficou. Digo muitas vezes " sou mázinha mas tal como a minha avó nunca disse que era boazinha"...

20 outubro, 2007

I don't want to talk about it - Rod Stewart & Amy Belle (clica aqui)

Can you tell by my eyes
That I've probably been crying forever
And the stars in the sky
Don't mean nothing to me
They're a mirror

Acho tão natural que não se pense

Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa ...

Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas. . .
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente. . .

Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos ...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.

(Alberto Caeiro)

Saudades do meu tio da América


Eu tinha 7 anos quando o meu tio João da América me contou como tinha sido difícil começar a vida do outro lado oceano. Para que eu percebesse como tinha sido realmente difícil, para que eu entendesse que ele nem sempre tinha tido os bolsos cheios de dólares, o meu tio da América contou-me que quando chegou aos esteites a primeira casa que teve não tinha sequer um frigidére... eu fiquei tão aflita com aquela revelação que lhe perguntei logo se ele não podia sequer comer um ovinho estrelado. Então o meu tio da América soltou uma gargalhada bem sonora e apontando para o frigorífico da cozinha da minha avó, explicou-me que era aquilo o "frigidaire"...
Contava o meu pai que o tio João antes de ir para a América não era capaz de guardar dinheiro nenhum com ele. E ilustrava esta verdade com a seguinte estória: um dia o tio João chegou já tarde a casa e o meu pai já estava deitado no quarto que partilhavam e quase a dormir. Então o tio João deitou-se mas passado pouco tempo levantou-se e o meu pai perguntou-lhe se ele estava mal disposto. Ele respondeu que não mas que tinha recebido o salário semanal naquele dia e ainda não tinha gasto tudo, pelo que precisava de sair para a acabar de o gastar!
O meu tio da América não se tornou um homem forreta, muito pelo contrário gostava muito de dar presentes, mas não creio que tenha conseguido o que conseguiu tendo em NY o mesmo comportamento que tinha em Lisboa...
Tenho saudades tuas, tio.

19 outubro, 2007

Metade - Adriana Calcanhoto (clica aqui)

Eu perco o chão, eu não acho as palavras
Eu ando tão triste, eu ando pela sala
Eu perco a hora, eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim

Poema em linha recta



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe, todos eles príncipes na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Álvaro de Campos)

Apresento o meu tio da América.


O neto do último dos moícanos, vestido de forma sóbria e simples sobe a escada rolante na estação do Metro. Na carruagem comigo entra uma velha senhora americana, vestida desportivamente, sem grande aparato, a não ser os adornos em ouro americano, o cabelo pintado de louro e muito mal tratado, um boné branco na cabeça que não condiz com o resto bem como uns chinelos de "enfiar o dedo" de plástico e cheios de pedras brilhantes que eu diria terem sido comprados num "chinês"... e quase de certeza que foram, pois quem há hoje que possa dizer nunca comprei nada no chinês? Eu sei: contam-se pelos dedos de uma mão! Adiante...
Estas duas personagens (não me perguntem como é que eu sei que aquele homem vestido de cores neutras é o neto do último dos moícanos) é e ponto final, não faço parágrafo, fizeram-me recordar o meu tio da América.... pois é: o tio João, sempre carregado de presentes e dólares, oferecendo relógios em ouro (cá para mim comprava-os lá na Chinatown, só que nessa altura não havia chineses em Portugal senão os poucos que tinham os poucos restaurantes da especialidade... por falar nisso até já tenho saudades de ir à "Casinha Chinesa" se bem que a idade traz refinamentos e agora prefiro a comida japonesa e o serviço de excelência dos restaurantes japoneses... Mas voltando ao meu tio da América...
O João era mais velho uns anitos (poucos) que o meu pai e era tio dele... Aos 30 anos abandonou uma carreira de estofador em Portugal, fugindo a uma mulher que toda a vida o amou e a quem ele deixou grávida de uma filha que viria a ser imediatamente reconhecida quer por ele quer por toda a família mal nasceu...
Chegado a Nova York passou maus bocados como qualquer emigrante que se preza, mas resolveu apostar em si e fez um curso de decoração que fez dele um homem bem sucedido, não rico mas vivendo bem... Decorou várias casas de gente famosa e lembro-me perfeitamente do carinho com que ele falava de Bete Davis que segundo ele tratava toda a gente de igual para igual... quem diria com os papéis que fez ao longo da vida...
Quando o conheci ele tinha uma mulher porto riquenha chamada Inês e um filho da idade da minha irmã mais velha chamado John.
Estive com o meu tio da América várias vezes ao longo da vida e acho que vou voltar aqui para contar as suas estórias que são muitas e muito divertidas... Amanhã quem sabe?

18 outubro, 2007

Cotidiano - Chico Buarque (clica aqui)



Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor

Minha menina se foi ao mar

Minha menina se foi ao mar
a contar ondas e pedrinhas,
porém se encontrou, de pronto,
com o rio de Sevilha.
Entre adelfas e sinos
cinco barcos se mexiam,
com os remos na água
e as velas na brisa.
Quem olha dentro a torre
adornada de Sevilha?
Cinco vozes contestavam
redondas como anéis.
O céu monta elegante ao rio,
de margem a margem.
No ar cor-de-rosa,
cinco anéis se mexiam.


(Federico Garcia Lorca)

Juntos outra vez.

Quando me ofereceste o CD com as palavras que nunca mais me dirás, soube que as ouviria para sempre... soube que nunca mais as dirias mas que eu as ouviria sempre, para sempre, embora para sempre seja sempre longe demais... o que tivemos foi muito mais do que a maior parte das pessoas pode contabilizar na sua vida. 17 anos de paixão não é coisa de que qualquer um se possa gabar. E como foi possível? Graças a ti que estavas sempre presente, que nunca te cansavas de conversar, de rir de me dizer várias vezes ao dia, amo-te, quero-te e eu acreditava quando o dizias, sempre que o dizias porque sabia que era verdade, que era a maior verdade à face da terra, aquela que nunca ninguém poderia desmentir, aquela em que acreditaria, acredito para sempre... porque tu eras de verdade. Se eu voltava do cabeleireiro com o cabelo curto era um drama, só o fiz uma vez, tu não disfarçavas, por mais que eu te dissesse, vai crescer daqui a 2 meses já tenho imenso cabelo outra vez, tu nada, mudo e quedo, foram os dias mais difíceis da minha vida... mas duraram tão pouco se comparados com todo o tempo que vivemos juntos, com tudo o que passeámos, com tudo o que rimos, de tudo e de nada e até de coisa nenhuma...
Quando dizias meu amor, eu sabia que era verdade. E eu nunca mais disse meu amor a alguém do mesmo modo que te dizia a ti... porque aquilo era mesmo um sentimento de verdade, algo que cultivávamos que queríamos que crescesse... e cresceu, amadureceu e mal me apercebi que estava a apodrecer decidi terminar... decidimos eu acho... não foi propriamente pacífico mas rapidamente percebemos que não podíamos deitar fora tudo o que vivemos juntos e transformámos o que tínhamos em amizade, companheirismo, atenção, cuidado com o outro... estás bem, as férias foram boas, como está tudo... temos saudades um do outro mas já não é aquela coisa que doía no corpo. É um sentimento fácil e bom que se desvanece quando nos encontramos... e um dia destes vamos almoçar juntos... outra vez.

17 outubro, 2007

Dor Elegante - Chico César (clica aqui)

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Hum! Hum!...

No exato automóvel


No exato automóvel, viajamos.
Em corpo e nervos, sal, angústia, grito.
Suor, temor da noite, aonde vamos?
Direita, esquerda? (Cruzamento) . Hesito.
Onde? Por onde? Somos dois, calados.
A chuva alaga o universo à volta.
À beira dágua, acenam-nos soldados.
Soam no escuro os passos de uma escolta.
Finco as mãos no volante. Derrapagem
— ou medo apenas do que vai comigo?
Já está próximo o termo da viagem.
Apertamos as mãos. "Saúde, amigo".

(Daniel Filipe)

Só quero viver assim...

Cansada dos teus conselhos, viajo. Cansada tão cansada das mesmas palavras, as mesmas teorias eu sei que daqui a uns dias esqueço que estou cansada, esqueço como me cansas, esqueço como me sinto só quando estou contigo e apareço do nada e não te surpreendo porque já sabes que é sempre assim, entre nós não existe nada que possa ser nomeado é uma coisa que nenhum de nós sabe o que é, mas agora digo para mim que não quero mais sentir-me assim, quero ficar sozinha para não me sentir só, não quero mais o peso da tua presença, essa coisa maléfica que me pesa como um fardo, tudo em ti me pesa, tudo em ti me dói, não sei se é dor, não sei se é amor, não sei o que é, não gosto de ti não sei o que é, não gosto da tua vaidade não gosto dessa maneira tão única como dizes eu é que sei, é como digo, o que os outros te dizem não é verdade, eu é que sei, eu é que vi, eu é que vou contar... contar o quê? As teorias com que tentas explicar o dia a dia, uma vida que eu quero simples e tu queres achar razões para tudo, para cada passo que eu dou, para as minhas crenças e para a minha descrença, queres esmiuçar tudo o que sinto e eu... eu só quero seguir este caminho que tenho para percorrer, da melhor maneira possível, sem procurar grandes teorias que me expliquem porque é que esta flor é desta maneira e aquela de outra... que me importa se a mim basta olhar e ver a beleza de cada coisa, de cada pequena coisa que nasce e cresce à minha volta, enquanto vou passando sem que me ouças porque se me ouvires lá vens com as tuas teorias estragar cada momento de silêncio ou nem por isso que eu amo.

16 outubro, 2007

Trova do vento que passa - Adriano Correia de Oliveira (clica aqui)

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Desnecessária explicação


Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?

(Daniel Filipe)

Todos os dias.

O homem bojudo caminha freneticamente, esperando assim perder o bojo, suponho... ficará tão cansado àquele ritmo que não voltará a ter coragem para fazer outra caminhada e viverá para sempre com o seu bojo, quiçá um pouco maior dentro de pouco tempo? Homem bojudo ouve o que te digo, desacelera e curte o passeio já viste quanta coisa bonita existe ao longo do percurso para apreciares? E se voltares amanhã verás que tudo o que te rodeia está diferente mas continua encantando os nossos olhos e os nossos sentidos...
Ali em baixo, num pedaço de areia deixado pela maré vazia, um homem alto e magro de slip azul come uvas que vai tirando de um saco... há bastante tempo que está a comer e parece-me que o saco tem um fundo falso... desisto e continuo, certamente o homem faz o milagre da multiplicação!
Uma mulher caminha de calções, parando com frequência para fazer exercícios que ninguém compreende o que os obriga a virar o pescoço para trás para tentarem perceber o que ela pretende com aqueles gestos que pretendem ser exercícios e serão certamente, que o facto de não nos serem familiares não quer dizer que não o sejam pois claro e mal acaba um desses exercícios retoma a caminhada cada vez com mais vigor o que me faz pensar que os exercícios que faz e provocam a admiração de todos, para além de existirem são realmente de muito boa qualidade quer para o corpo quer para o espírito...
Mais adiante uma mulher velha frente a um cavalete pinta o mar e as rochas numa pequena tela e fico surpreendida com a qualidade de cada pincelada e com a o quadro que vai nascendo de todo o movimento que a mulher observa olhando o mar...
São as pequenas coisas da vida pequena que levo e que tenho a ousadia de considerar tão bela e tão útil. Todos os dias.


15 outubro, 2007

Homens - Manu Chao (clica aqui)

todo homem que se preza tem que impor respeito,
saber ouvir, falar, escutar, ter dinheiro, celular,
ser bom de cama, e te respeitar...
se o homem não tiver nenhuma dessas virtudes,
saia de perto e tome uma atitude

Barbearia

Na barbearia às escuras
Júlio Chaúque foi barbeado
quando voltava da machamba de milho.

Os que viram
dizem que Júlio foi escanhoado
até às carótidas do colarinho
em requintes de gilete
dos facões de mato.

Os barbeiros do Chaúque
deixaram em toalhas de folhas secas
congruentes nódoas roxas.


(José Craveirinha)

Tenho mau feitio


Tenho mau feitio. Vou logo avisando para que não haja surpresas... e as pessoas acham que quando digo isto estou brincando... não estou. Tenho mau feitio. Mesmo! Há muitos anos que deixei de me apresentar com o meu lado feliz e prefiro apresentar-me com o meu lado escuro, ou como diria o Tê o meu lado lunar.
E porque tenho mau feitio há uma série de coisas que não suporto e que me fazem passar a não tolerar as pessoas quando fazem esse tipo de coisa. Não suporto por exemplo, que me tentem comprar, seja lá de que maneira for, dos presentes às tentativas de mimo e digo tentativas porque depois de me tentarem comprar nada passará de tentativa... arredo e não deixo que se aproximem mais de mim. "À primeira todos caem e à segunda cai quem quer (eu já tenho caído à segunda quando quero muito bem a alguém) mas à terceira só caem os parvos". Ouço este ditado desde pequena e sei bem que a maior parte das vezes, a maior parte das pessoas passa a vida a perdoar... mas eu tenho mesmo mau feitio. Não perdoo, não esqueço e tudo o que quero é distancia... de quem me tenta sacanear.
Não é que eu goste de ter mau feitio. Não é que eu goste de não conseguir perdoar. Juro que não é isso. É mesmo uma incapacidade... só que já aprendi a viver com ela e não seria capaz de começar a perdoar só porque me falam em tom musical...

14 outubro, 2007

Bom Conselho - Chico Buarque e Eugénia Melo e Castro - Clica aqui

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado,
quem espera nunca alcança

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do
vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo
numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do
vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de
sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da
chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o
silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total
abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e
de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor
em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o
olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul
da presença.
Não sou a destruição cega nem a
esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma
palavra.

(António Botto)