tenho andado a pensar em ti, tia Lucinda. O sol tem brilhado cá por estas bandas embora faça frio. É claro que se cá estivesses me gozavas por eu dizer que está frio, habituada como estás aos rigores do Inverno do Canadá. Bem queres que eu vá ter contigo, mas não me apetece, sabes? Então não era melhor vires tu cá em pleno Verão e irmos até ao Algarve, sul de Espanha, Barcelona, quem sabe às ilhas gregas? Eu sei que conheceste tudo com o teu António. Mas desde que ele se foi és a mulher mais moderna e independente que conheço, sobretudo tendo em conta que teimas em continuar analfabeta.
Sei que tal como arranjaste uma maneira de escrever uns "gatafunhos" que só mesmo tu compreendes, arranjarás maneira de ler o que escrevo hoje para ti.
Vinha no comboio, o sol brilhava, o rio estava azul e liso, com os reflexos do sol a fazer uma estrada prateada. E pus-me a pensar nas férias que passámos várias vezes contigo. Só fazias o que te apetecia, como dizias. Gostavas muito do teu António, mas agora que és dona do teu nariz, nunca mais ninguém manda em ti. Ficávamos sentadas na cozinha, depois de termos desligado a televisão. Os miúdos estavam na cama há horas, estafados de mar e sol, M às tantas também se ia deitar e ali ficávamos as duas. Contavas-me as estórias da tua infância (ainda eras mais traquina que eu) e eu contava-te as minhas.
Gostavas de falar de amor. Dizias que eu e M éramos o casal perfeito, que nunca nos tinhas ouvido discutir, que estávamos de acordo em tudo (só não percebeste nunca a que preço!); também não percebeste nunca porque é que eu não queria casar com ele, nem com ninguém. E eu então eu dizia-te "tia, isso é tudo muito bonito, mas nada é para sempre!". Mas tu teimavas. Que um dia ainda havias de fazer o nosso casamento. Acho que agora percebeste que não o farás jamais. Como também percebeste que os nossos laços continuam fortes, mais "nós" que laços na verdade.
Tenho saudades de ti! Da tua sabedoria imensa de mulher analfabeta. Fazes anos dentro de dias. Não sei quantos, mas sei que são mais de 70. Eu sei que não se diz a idade de uma senhora. Mas tu és das minhas. Estás-te nas tintas para as convenções.
Por isso , vamos combinar: vens cá no Verão, seis meses digamos e vamos dar umas curvas. Olha que Espanha não é nada do que era quando a visitaste com o António. O mundo mudou. Agora escrevem-se cartas na NET, e eu sei que tu gostas das minhas cartas.
Sei também o quanto gostas de mim e dos miúdos, sobretudo do Chiquinho, o teu menino que protegias de tudo e de todos. Porque era o caçula ou porque o achavas muito parecido contigo quando eras menina?
Portanto, vamos combinar. E como és mulher de palavra vais cumprir. Só não cumpriste aquela promessa que me fizeste de voltares aos bancos da escola para aprenderes a ler. Mas pronto. Lês à tua maneira o que te interessa. E porque te adoro estás perdoada. E cá te espero lá para Julho, quando começa a fazer calor "comme il faut".
Deixa-me só contar-te que apareceu hoje aqui em Lisboa, bem perto da zona onde nasceste e cresceste um cartaz contra os emigrantes. Tu que andaste por esse mundo fora para teres uma vida decente, o que pensas desta corja de canalhas que se esquece dos nossos emigrantes e quer escorraçar os nossos imigrantes? Eu sei o que dirias... não precisas, já ouvi!
Beijos e um abraço bem apertado desta tua sobrinha que te adora
Maria Eduarda
2 comentários:
Palavra: fiquei a simpatizar com a tia.
Palavra: fiquei a simpatizar com a tia.
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