1.
Não estou pensando em nada
E essa coisa central , que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o Verão quente do dia.
Não estou pensando em nada, e que bom!
Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
É como se me tivesse encostado mal,
Uma dor de costas, ou num lado das costas.
Há um amargo de boca na minha alma:
É que no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada..
2.
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto -
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo..
E a luxúria única de não ter mais esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
( Álvaro de Campos )
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