08 fevereiro, 2007

VOZ HUMANA

POEMA
Dói a cicatriz da luz,
Dói no chão a própria sombra dos dentes,
Tudo dói,
Até o triste sapato que o rio levou.
Doem as plumas do galo,
De tantas cores,
Que a fronte não sabe que posição tomar
Perante o vermelho cruel do poente.
Dói a alma amarela ou uma lenta avelã,
A que rolou pela face abaixo quando estávamos dentro
De água
E as lágrimas não se sentiam senão quando tocadas.
Dói a enganadora vespa
Que às vezes debaixo do mamilo esquerdo
Imita um coração ou um latejo,
Amarela como o puro enxofre
Ou as mãos do morto a quem amávamos.
Dói a habitação como a gaiola do peito,
Onde pombas brancas como sangue
Passam por debaixo da pele sem pousar nos lábios
Para se afogarem nas entranhas com as suas asas
Fechadas.
Dói o dia, a noite,
Dói o vento uivante,
Dói a raiva ou a acutilante espada,
Aquilo que se beija quando é noite.
Tristeza. Dói a candura, a ciência,
O ferro, a cintura,
Os limites e esses braços abertos, horizonte
Como coroa assente nas têmporas.
Dói a dor. Amo-te.
Dói, dói. Amo-te.
Dói a terra ou a unha,
Espelho em que estas letras se reflectem.
Vicente Aleixandre, in " A Destruição ou o Amor "

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