Ontem, desapareceste estranhamente de nossa casa! Estranhamente, ou talvez não! Muitas vezes, pensei que uma coisa destas iria acontecer. Nunca vi uma gata como tu! Eras felina, ao máximo. Eras deliciosamente selvagem. Caçadora. Vivaça. Esperta. Rapidíssima nos movimentos. Estavas toda ligada à Natureza. O modo como fugias!. Parecias um macaco: primeiro saltavas, cabriolavas, e depois disparavas, meteórica, como um foguetão... Sempre foste um problema. Comeste o casal de canários de que tanto gostávamos. Foi um grande sofrimento, mas já estavas perdoada. Partias tudo o que era bibelot, muitos deles guardados, durante anos, com quase religiosidade, por serem antiguidades, caros e bonitos. Que pedagógica ironia! Eras diferente, Lai Si. E agora, desapareceste, agora... que começava a amar-te...
À medida que te fomos conhecendo ...é que comecei a compreender o modo como te encontrámos. Perdida, num pinhal.À beira da estrada, junto da nossa casa de Brejenjas. Mas a miar. Com deteminação. Com vigor. Como se soubesses de direitos. Sòzinha. Suja.Cheia de piolhos. Mas sòzinha, porquê? À medida que te fomos conhecendo, percebi: não tiveste paciência para esperares pela tua mãe. A tua mãe, que tinha, por certo, uma ninhada. E lembrou-se de vos levar, um a um, como fazem as mães gatas, para um lugarejo mais seguro. A mãe gata vai e vem. Leva e vem buscar. Mas tu, minha desatinada, minha querida, podias lá esperar! E foi assim que a minha filha Rita te encontrou. Claro que tu foste logo ter com ela. Sabidona. Oportunista. A vida no mato não era para ti. O teu destino era outro. E a Rita lá me levou ao pinhal. Pai, é a minha prenda de anos. Foi em Agosto. Dia 20. Como podia negar-te, minha filha, esse prazer? O nome que lhe demos, Lai Si, significa, em chinês, isso mesmo: uma oferta.
Quando chegaste a Lisboa, e o Novelo, gato velhote, te viu, a invadires o teritório dele, foi um caso sério, como costuma ser nestas circunstâncias. O Novelo desapareceu do mapa. Escondeu-se debaixo das camas e dos móveis. Só saía de noite, para comer. E foi muito devagar,muito devagar, que se foi aproximando. A olhar para ti. Com cuidado. A examinar-te. E como estava só, devido à morte recente do outro gato, que tivémos, chamado Caricas, viu na Lai Si uma forma de compensação. E foi uma grande alegria quando começaram a brincar. E quando vieram os dias frios, começaram a dormir juntinhos, abraçados, como só os seres humanos apaixonados fazem. Se vocês vissem como ambos se lavavam um ao outro, lambendo-se mutuamente as orelhinhas e os focinhos, porque sozinhos é a parte do corpo que não conseguem atingir com as suas línguas! Para além disso, eram ambos muito amigos do nosso cão, o Gwyn. Este, deixava a Lai Si ir comer a sua comida, embora rosnando com meiguice. Até se afastava para ela passar, ele, que é um cão comilão, como são todos os Goldens Retrievers. A Lai Si atirava-se contra o rabo do Gwyn, e saltava para cima do seu grande corpanzil, e o cão deixava. Eram amigos. O único cuidado que era peciso ter era evitar que a Lai Si magoasse o Novelo, já que este é um gato muito velhinho e que já sofreu muito na vida.
Dá por isso pena ver como o Novelo anda pela casa a miar lânguidamente, a procurar a Lai Si, com saudades, e não compreendendo nada do que se está a passar...
Parecia eu que adivinhava que isto podia acontecer! Bastava abrir uma janela: a Lai Si saltava para o beiral e punha-se a cogitar as hipóteses de ...caçar! Eu via perfeitamente que o olhar dela procurava os pássaros que riscavam com os seus voos bonitos o ar da manhã. O mesmo, na varanda: como era possível que não tivesse vertigens e não tivesse medo de cair de um quinto andar para baixo? Qualquer dia... pemsava eu...É que bastaria que o Gwyn se aproximasse, ladrasse, brincando, claro, para que ela, com o susto, pudesse cair na rua...
Foi assim que aconteceu, ontem? Não sabemos. Podia ter-se escapulido pela porta, pois era muito ágil, e por mais de uma vez tivemos que ir buscá-la ao último piso, sempre a correr, porquanto ela nunca parava. Queria era movimento. Aventura. Ou então, meteu-se em alguma gaveta. Em algum buraco. Não sei. Já corri tudo. Desde máquina de lavar, fogão, sacos de pástico, arrecadação, guarda- fatos, sei lá!. Já falei com os vizinhos do primeiro andar, que têm terraços. Ninguém a viu. Já calcorreei os terrenos em volta. Já fui ao veterinário, perto de casa. Aí, dissram-me, ao contrário do que eu pensava, que cinco andares podem não ser suficientes para ela ter morrido. Até cinco dias... pode aparecer, disseam-me. Só que eu não tenho esperança. Noite fora, ponho-me, no entanto, à escuta de ouvir algum lamento. Nada. Já afixei no elevador um pedido para que me digam alguma coisa, caso a encontrem. Nada.Ou melhor: alguém, que detesta animais, rasgou o papel: é que o papel conspurca a limpeza, a arrumação do imóvel. Sabes, Lai Si, tenho muitas saudades tuas. Se tu aparecesses...
Agora que estrava a começar a amar-te, é que tu nos fazes uma coisa destas.
Se tu aparecesses, era uma grande alegria...
Eduardo Aleixo
3 comentários:
Pelos vistos começaste a amá-la tarde demais... mas pode ser que volte. Tenho tantas estórias com gatos. Amo-os de paixão, exactamente por serem independentes, incapazes de aceitar ordens mas limpos! Cuidadosos e orgulhosos de serem quem são. Se acreditasse em vidas anteriores, saberia que fui uma gata...
Talvez.
Mas só sei amar, depois de conhecer.
Se calhar, conheci-a tarde demais.
EA
Tomara que ela apareça para o bem de toda a família.
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