UMA VIOLA E UM BANDOLIM
Num filme que vi, há muitos anos, chamado " Um fim de semana alucinante ", passado na Geórgia, nas margens de um rio caudaloso, numa zona selvagem, palco de um fim de semana trágico, com imagens de grande violência, há uma cena impressionante, do encontro de um homem " civilizado", que era poeta, e que levava na mão uma viola, com uma criança, que vivia na solidão da floresta, e que não comunicava, ou melhor: nada dizia, melhor ainda: não falava, olhava apenas, com os olhos atentos, meigos, suplicantes, e que tinha nas mãos um bandolim.
O homem " civilizado " e que era poeta e que por isso viu nos olhos da criança toda a beleza da floresta circundante e a música do rio caudaloso que perto corria, querendo despedir-se da criança, mas não encontrando as palavras adequadas, dedilhou as cordas da viola. A criança respondeu, afagando as cordas do seu bandolim.Foi um cumprimento tímido, a princípio. Um monossílabo. Mas que se repetiu e foi crescendo, crescendo, crescendo....Até que, frente a frente , a viola e o bandolim se irmanaram na mesma melodia, num diálogo cada vez mais rápido, trepidante, intenso, que abriu a boca da criança num sorriso mais vasto do que o mundo...
Estou a lembrar-me também de outra criança, que aparece nas páginas do livro, a " Seara de Vento ", do grande escritor, Manuel da Fonsaca, numa paisagem diferente, a planície alentejana, na década de sessenta, e que face à realidade difícil dos homens e mulheres impotentes na sua revolta, a criança, atenta aos seus movimentos de figuras trágicas nas noites de vento e nos dias de sol demasiados para os estômagos com fome, fazia sentir a sua presença solidária, de modo persistente, o seu apelo, o seu lamento, gizando a sua estrada rumo ao encontro com os outros, gemendo: « Nha Mãe,... Nha Mãe... Nha Mãe...»
Há nestas duas crianças, ditas "anormais", modos de ser, sinais claros, disponibilidades expessivas,que têm um significado: o de que são seres humanos com sensibilidade, como os outros ditos " normais", providos de atenção para o mundo,com a sua forma peculiar de inteligência, com os seus caminhos próprios e diversos, que vão dar ao mesmo mundo de que todos fazemos parte: o mundo da solidão original e da comunicação indispensável.
Não fazem pois parte de outro mundo as pessoas ditas " anormais". A sociedade é que demasiadas vezes não quer ver as portas que se podem abrir e que, uma vez abertas, deixam jorrar a música quente e fraterna das cordas de um bandolim, ou o lamento sério e doce de uma alma que de tão sozinha e impotente se vira, em último caso, para a figura simbólica de uma Mãe...
Eduardo Aleixo
( Crónica publicada, em 18/12/1980, na Revista "Processo Zero" , do CCD, da então Caixa Nacional de Pensões, com algumas, mas pequenas alterações a que procedi agora. Embora crónica já antiga, continuo a gostar dela ).
1 comentário:
Vês Custódia? Não és só tu que dizes Nha Mãe... Também os cabo verdianos o dizem em crioulo e os ribatejanos tal como tu que és alentejana. Mas tens que dizer minha mãe mulher... que diabo, pá. tu és professora!
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