23 outubro, 2006

Ao Vadio

Vou aproveitar o comentário do Eduardo Aleixo a "A cachorrinha" para contar uma das muitas estórias que tenho, passadas com animais.
Mas antes disso quero esclarecer o meu querido amigo que o meu almoço de sexta feira passada foi adiado pela minha amiga, que por sinal é alentejana e vive entre o Redondo e Lisboa. Perdoo o mau juízo que fazes de mim porque me conheces há meia dúzia de meses e provavelmente nunca me ouviste dizer "não sou um saco de farinha" quando chove a potes. A chuva, o frio ou o calor nunca me impediram de estar com os amigos... nem sequer de andar na rua. Não há muitas coisas mais gostosas que um bom banho de chuva. É uma dávida da natureza, a despeito de, por causa desta minha teoria muitos me considerarem louca. Mas tenho que respeitar a minha amiga. E há pelos menos duas coisas que fazem com que ela adie compromissos: uma é a chuva; a outra (acho que ainda mais forte) são os dias em que o Benfica dela joga. E eu respeito isto. Também quem já esperou tanto tempo pode esperar mais uns dias e fazer-lhe a vontade. É ou não é?
Quanto aos burros e burras meu amigo, também eu os adoro e tenho assinado tudo quanto é petição para tentar que os burros voltem. São animais lindos, carinhosos e para além disso, também vivi no meio de burros e tenho também estorias inesquecíveis com burros. É evidente que usei o termo "burra" para me autodenominar, porque acho mais carinhoso que estúpida. E adiante.
Há 28 anos eu vivia na ilha de S. Miguel, entre a praia do Pópulo e a Lagoa, na Atalhada. Isto é para situar quem conhece minimamente a Ilha. Trabalhava na Ribeira Grande e para fazer menos 20 km, dirigia o meu velho Renault 4L, por uma estrada de terra batida que atravessava a ilha, poupando-me assim umas boas dezenas de km todos os dias. E de tempo!
Costumava tomar o pequeno almoço num pequeno café da Ribeira Grande. O meu filho mais velho tinha 2 anos e eu esperava o segundo. Um dia entrou um cão vadio pelo café e aproximou-se da minha mesa, de olhos meigos, uma orelha deitada abaixo, um ar de abandono incrível! Peguei no que restava da sandes de fiambre e dei-lha. Lambeu-me a mão e ali ficou a abanar a cauda. Seguiu-me até ao meu emprego.
No dia seguinte, mal viu a 4L desatou a correr. Passei a pedir uma sandes todos os dias para o bicho. Todos os dias ele me seguia até ao emprego.
Comecei a fazer perguntas na vila acerca do bicho e contaram-me uma estória curiosa. O desgraçado virava os caixotes do lixo da vila durante a noite, em busca de comida. Um dia, pelas 3 da manhã um polícia resolveu dar-lhe "caça". Começou a perseguir o bicho pela vila. Há um largo com um pequeno lago no meio da vila. O "chui" atirou com o cassetete ao cão na tentativa de o fazer parar. Só que o cassetete foi parar no meio do lago e então o "chui" teve que se meter dentro do lago para achar o maldito cassetete. Esta cena foi presenciada pelos boémios da vila que riram a bom rir com a mesma. Danado, o polícia resolveu oferecer a soma de 500$00 (na altura era dinheiro!) a quem lhe entregasse o bicho, vivo ou morto.
Esta estória aumentou ainda mais a minha estima pelo cão, sabendo-se como eu estimo os agentes da autoridade!
Acontece que estavamos em pleno Verão e ao sair da praia da Ribeira Grande ao fim da tarde, descobri que tinha um pneu da 4L em baixo. Mudei o pneu e foi assim que o meu segundo filho nasceu antes do tempo previsto.
Estava pois de licença de parto e deixei de ir à Ribeira Grande. Entretanto os meus pais foram visitar-me para conhecer o segundo neto.
Eis que um dia que ia mostrar-lhes os sítios mais interessantes de Ponta Delgada e ao volante da minha 4L à entrada da cidade, vejo o cão no passeio. Abrandei e disse à minha mãe que ia no banco traseiro que abrisse a porta. Ela fez o que lhe pedi e o cão mergulhou imediatamente no banco, tendo o cuidado de passar por cima do colo dela, aonde ia o meu filhote com menos de 1 mês.
Batizei-o de "Vadio" e foi o melhor cão que alguma vez tive. Nessa altura eu tinha um pequeno zoo uma vez que tinha comprado uma casa de "bonecas" com um "quintal" de cerca de 800m de comprido por 50m de largura.
O tempo foi passando e embora a casa estivesse bastante isolada eu não tinha medo nenhum de lá viver sózinha porque o vadio não deixava ninguém aproximar-se. Era um verdadeiro guarda costas!
Só que tinha que se distrair com alguma coisa. E o que lhe dava verdadeiro gozo era, durante a noite atirar-se aos motociclistas: surgia no escuro da estrada, do nada, a ladrar e a tentar morder os pneus das motorizadas... os tipos é claro que se assustavam e caíam!
Um belo dia, dois polícias batem-me à porta de casa. O Vadio que nunca deixava ninguém atravessar o portão, quanto mais aproximar-se da porta, manteve-se muito quieto à porta da sua casota. Os senhores agentes disseram-me que tinham recebido uma queixa na esquadra. Segundo a queixa eu tinha uma "fera" em casa. Apontei então o Vadio, muito quieto e calado, na sua, e disse: - é o único cão que tenho. De resto são patos, galinhas, pombos e gatos...
Os polícias retiraram-se confundidos mas acreditando na minha versão. Ao fim e ao cabo eles tinham visto que a "fera" era um cão de tamanho médio e olhar meigo.
Escusado será dizer que quando tive que me deslocar a Lisboa por uns dias, o cão foi morto por envenenamento! Mas eu tenho muitas saudades do meu Vadio. Da sua orelha partida por maus tratos. Do seu olhar meigo.
Gosto tanto de animais que não tenho nenhum há anos, porque considero que não tenho condições para ter qualquer animal num apartamento. Os bichos são como eu: precisam de espaço!
Eu vivi durante muitos anos as minhas férias grandes no mato, em África. Aprendi a gostar de todos os animais. E não vou falar aqui do meu amor por répteis porque sei que há muita gente que se arrepia só de ouvir o nome "serpente" ou "crocodilo". Por isso fico mesmo por aqui.
Mas fiquem sabendo que o abraço das serpentes é tão gostoso quanto um abraço humano!

2 comentários:

Anónimo disse...

Tenho um verdadeiro pavor de repteis.

Anónimo disse...

Saboreei surpresa e gostosamente a estória (história) do Vadio.Adorei a terna irritação que te tomou ( claro que foi apenas uma irritação estético-literária...) por causa dos burros, ou melhor, da burra, tema que tratei brincalhonamente ( embora, tal como tu, adore os burrinhos).Gostei muito que a tua amiga seja do Glorioso, mas não lhe perdoo,como alentejano que também sou, que ponha o Glorioso à frente de uma pessoa como tu.Adorei, sobretudo, que fosses buscar um tema, que à primera vista não daria que falar, mas que, como o mistério da vida nos ensina, fez eclodir sentimentos, emoções, lembranças, fotografias, e tudo isso deve-se a quê?.
Deve-se à abertura do coração e do espírito.À necessidade de partilha.
À beleza da comunhão entre os seres e as almas...
E quanto ao teu gozo em te banhares na chuva... nunca o poria em dúvida...mesmo, como tu dizes,conhecendo-te pouco em termos temporais, que o mesmo pode não ser de acordo com a sabedoria de outros calendários...