17 junho, 2006

Prefácio para um livro de poemas

Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro.
Víamos -pelo lado menos sombrio do pensamento-
todo o sistema planetário.
Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos.
O latejar do tempo na humidade dos lábios.
E a insónia,
com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos.
As estrelas mortas das cidades imaginadas.
Os ossos (tristes) das palavras.
A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.
Em redor dele chove.
Podemos adivinhar um chuva espessa,
negra,
plúmbea.
Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge,
esvoaça.
As cidades
(como em todos os livros que li) ardem.
Incêndios que destroem o último coração do sonho.
Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha,
absorto,
a laranja.
A queda da laranja provocará o poema?
A laranja voadora é ,

ou não é,
uma laranja imaginada por um louco?
E um louco,

saberá o que é uma laranja?
E se a laranja cair?
E o poema? E o poema com uma laranja a cair?
E o poema em forma de laranja?
E se eu comer a laranja,
estarei a devorar o poema?
A ficar louco?(...)
E a palavra laranja existirá sem a laranja?
E a laranja voará sem a palavra laranja?
E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto,
e alguém a (esquecer) no meio da noite
-servirá
(o brilho)
da laranja para iluminar as cidades há muito mortas?
E se a laranja se deslocar no espaço
-mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita-
criará uma ordem ou um caos?
O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade.
Foi escorraçado.
(E)
na desolação das terras,
noite dentro,
vigia os seus próprios sonhos e pesadelos.
Os seus próprios gestos
-e um rosto suspenso na solidão.
Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma,
no seu sexo,
no seu coração?
E se escreveu laranja na alma,
a alma ficará saborosa?
E se escreveu laranja no coração,
a paixão impedi-lo-á de morrer?
E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará?
Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja,
a vida do poema
-a Vida,
sem mais nada-
estará aqui?
Fora das muralhas da cidade?
No interior do meu corpo? ou muito longe de mim

-onde sei que possuo uma outra razão...
e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder,
enfim,
circular livremente.

(Al Berto)

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