18 junho, 2006

Lembrar Lambrakis


Não sei precisar em que momento do dia comecei a recordar a história de Lambrakis. Porque recordamos às vezes factos tão distantes... Eu tinha 5 anos quando Lambrakis, um deputado grego conotado com a esquerda, foi assassinado pelo poder vigente na Grécia. Recordo conversas do meu pai sobre este assunto; julgo que todos as mortes trágicas de que ouvi falar na minha infância, ficaram para sempre gravadas na minha memória.
Algumas vezes ao longo da minha vida, tenho recordado este facto e conversado com amigos, que não se lembram da história ou simplesmente ouviram falar mas desconheciam a sua veracidade... Ninguém ouviu falar de Lambrakis. Não sei como o meu pai soube da história, facto é que soube!
Na minha adolescência, veio parar às minhas mãos um romance do grego Vassilis Vassilikos, "Z", escrito em finais dos anos 60. O romance impressionou-me de tal forma, que o tenho relido algumas vezes ao longo da vida.
Decidi hoje postar aqui um texto do romance, que mais não é do que uma carta de amor, da viúva de Lambrakis ao seu muito amado marido. Não sei se me vou ficar por aqui... É que, como este, existem vários textos no livro, de rara beleza. O melhor, talvez seja mesmo, lerem-no do princípio ao fim.
Quem viu o filme (eu não vi, mas tenciono ver), leia o romance, porque não é possível que um filme (mesmo tendo em conta Costa Gravas), contenha toda a poesia deste romance.

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“Não há decadência depois da prosperidade. Mas como se pode decair sem nunca ter conhecido a prosperidade? E desde a tua morte é essa decadência que eu vivo. Voltei a ler o que te escrevi anteontem e senti a necessidade de continuar, pois não te disse tudo.
A noite era suave quando descia das montanhas e a acolhíamos em nossa casa. Abríamos-lhe todas as janelas para que ela se sentisse em casa e depois mandávamo-la embora quando nos apetecia. Amor com música, música com amor, tudo nos pertencia, lembras-te? Hoje – este «hoje» doloroso de que não posso fugir em nenhum momento –, hoje, a noite cerca-me nesta roupa de viúva com que os teus assassinos me cobriram.
A pergunta obcecava-me, ultimamente: porque havias de ser tu e não outro? Porquê tu que não eras comunista, mas sim humanista, no sentido mais lato, pacifista como toda a gente? Até que ontem li a carta que Pauling escreveu ao presidente Kennedy a teu respeito, e entre outras coisas – a tua biografia figura nela de maneira bastante cómica – ele escreveu que o que as direitas gregas quiseram atacar em ti foi o espírito de colaboração com as esquerdas e não as temem. O que temem são precisamente os homens como tu, que se orientam progressivamente nessa direcção. E desse modo quiseram aterrorizar os outros. Conseguiram matar-te, conclui Pauling, mas não puderam parar o movimento, que, graças a ti, vai aumentando.
Comecei hoje a mudança. Vou morar provisoriamente para casa do meu irmão. Era-me impossível continuar a viver neste nº 7 da Rua Thessiou. Cada rangido é uma dor na minha carne. O livro que encomendaras do estrangeiro chegou. Todos os dias chegam pacotes, cartas, poemas para ti; isso desespera-me. Não tenho coragem para o suportar. Hoje, o teu filho chegou da escola amedrontado. Estavam a brincar com as trotinetas e um dos miúdos ameaçou-o: ‘Eu vou-te matar como o teu papá’. Ele pensa que continuas em Londres e julgou que tinhas tido um desastre. Tranquilizei-o. Mas não pude impedir-me de chorar.
Como está tudo em desordem, uma desordem rectangular – os homens das mudanças, que entram e saem a todo o momento, andam pela casa como se estivessem num santuário; como estou prestes a sair deste ninho do nosso amor, as minhas pernas tremem e não sei como andar nua no mundo. Falo-te, à noite, durante horas sem fim.
Esta carta deve parecer uma fotonovela. Detestá-la-ias se a lesses. E eu detesto-te por não me escreveres. Tomei duas doses de sonífero e espero afundar-me em breve no sono. Não podes imaginar como sinto a tua falta. A cama tornou-se demasiado grande só para mim. E o teu caixão é estreito demais para te conter. Não haverá pois uma solução intermédia? Não poderemos encontrar um compromisso para tornar a tua própria vida e a minha própria morte mais suportáveis? Aqueles que vão pôr flores na tua tumba sujam o meu coração. Porque doravante eu estou ligada a ti por um laço que nenhum divórcio, nenhuma dissolução, poderia partir. E é por isso que te odeio ainda mais.”

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"in "Z" de Vassilis Vassilikos"

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