Quando estiver na hora diz-me, acabou o tempo. Compro o teu tempo como quem compra pão. Tu sabes. Há anos que me ouves. Quantas horas já te paguei? Quantas horas me cobraste? Sempre menos do que as que me ouves, bem sei, mas és tu o dono do relógio, tu és o dono do tempo que me vendes. És tu que fazes o preço. Eu sei que me fazes um preço especial. Afinal ouves-me desde sempre. Desde que me lembro de mim...
Afinal porque te procurei? Por me ter esquecido de quem era, lembras-te? Se calhar não te lembras. É natural. Quem me ouviu nos primeiros anos foi o teu pai. Não sei o que ele te contou de mim. Não sei o que escreveu na minha ficha. Não sei se me catalogou como louca. E olha que não foi por falta de lhe ter perguntado. Mas nunca me respondeu. Se calhar eu também nunca lhe dei tempo para responder.
Na verdade não me parece que esteja verdadeiramente interessada na minha ficha. Venho aqui porque não me julgas. Lá fora sim. Todos emitem opiniões. Todos querem ajudar. Ficam aflitos quando me perguntam, lembras-te, e eu, não não me lembro, é verdade não me lembro. Mas às vezes não acreditam. Não sabem que eu não me lembro mesmo. Não sabem que a certa altura a minha memória apagou. Que muito do meu passado é feito das estórias que me contaram. Sobretudo o meu pai. O meu pai contava bem as estórias. É por isso que o meu passado é tão encantador. Porque foi o passado que ele decidiu dar-me.
A minha herança.
1 comentário:
Maria Eduarda no mundo encantado das estórias.
Não te maces a tentar encontrar forma de o abandonares, para te juntares ao mundo dos consciente-dependentes. A consciência é o que nos preenche a memória e não tem de ser real, não necessita de ser catalogada e não é forçoso que se enquadre na "realidade" de um tempo medido à vontade de quem corre, sem que saiba para onde, ou em que sentido. A coerência encontra-se nas estórias, essas sim, são a realidade.
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