20 junho, 2007

Com a minha irmã.

Como falar de mim se não sei quem sou. Lembro-me de fugir com a minha irmã para longe da minha mãe. Lembro-me de muitos meninos como nós a correr pelas ruas. Lembro-me do cheiro das buganvílias. Lembro-me do cheiro do mar. E do macaco que comia bananas no jardim da vivenda em miramar. E das barrocas de terra vermelha que desciam até à baía. Mas de mim. Não me lembro. Não sei o meu nome. Posso ser João, José ou António. Posso ser Manuel ou Francisco. Serei o que quiserem que eu seja. Mas não me tirem deste quarto. Não me levem para aquela casa onde está uma mulher que dizem que é minha mas de quem não me lembro. Onde estão um rapaz e uma rapariga que me chamam pai e eu não sei porquê. Não tenho idade para ter filhos. Sou apenas um rapazinho de mão dada com a irmã, percorrendo as ruas de uma cidade africana.
Por isso deixem-me estar neste quarto. Daqui a nada entra aí o meu amigo com umas beatas que apanhou no chão ou talvez tenha conseguido hoje cravar um cigarro a alguém que tenha vindo visitar um familiar, um amigo. A mim só a minha irmã vem ver-me. Cada vez menos, é verdade. Acho que ela tem medo de mim. Do meu amigo. De todos nós. Mesmo que eu garanta, que jure a pés juntos que aqui ninguém lhe fará mal, que está mais segura do que lá fora onde ela diz que tem uma vida, um trabalho, filhos... como pode ela ter filhos se estamos os dois de mãos dadas a observar o macaco de miramar. Se depois disto iremos dar um passeio pela cidade, até que ela se canse. Até que seja obrigado a voltar para casa. A enfrentar gente que me diz que sou crescido, que tenho que estudar e casar e ter uma família... Só quando ela me obrigar a regressar... por mim ficava aqui com ela, de mãos dadas a olhar o macaco e depois chegaria o meu amigo e fumaríamos os 3 as beatas que ele conseguiu arranjar e mascaríamos pastilhas elásticas para que a mãe não perceba que estivemos a fumar... Cá por mim era aqui que eu ficava. Com a minha irmã.

1 comentário:

Bartolomeu disse...

E eu pensava que era um durão d'alma, que pouquíssimas frases, imagens ou situações me fariam aflorar aos olhos, as lágrimas...pfhhh, o que se descobre de nós...
No entanto uma reflexão me assalta... será que morrer de velhice, amortalhado em memórias, em doces memórias, será que essa morte é aquela a que vulgarmente se designa por morte-santa?