22 março, 2007

Não consigo recordar o som da tua voz...


Esperavas-me todos os dias às 5 da tarde, à esquina do edifício aonde eu vivia. Eu chegava e dizia "olá". Tu nada dizias. Eu ia falando enquanto nos encaminhávamos para a padaria... falava por mim e por ti.
Chegados à padaria esperavas-me à porta. Regressávamos a minha casa e eu continuava falando, de tudo e de nada. Tu calado. Limitavas-te a olhar-me por trás das lentes à John Lennon, cabelos compridos pelos ombros, chinelas com sola de pau como as minhas. Dizia-te que devias cuidar do cabelo, que ficarias careca rapidamente, que devias abandonar os charros, que devias voltar a falar com a tua família e com os teus amigos. Que devias deixar de perseguir o meu pai pela cidade, com a tua moto barulhenta só para o chateares, para que ele pensasse realmente que eu te namorava, porque sabias que ele não aprovava os teus comportamentos... isto era que eu pensava porque tu nada me dizias...
Mas houve aquele fim de ano memorável, em que apareceste na praia do morro da samba de mota, pela areia. Eu estava adormecida na areia, depois de uma noite de farra, e de uns banhos de mar e tu acordaste-me com aquela barulheira terrível. O motor da mota além de fazer o ruído insuportável do costume parecia um peixe a afogar-se num aquário. É claro que o barulho me acordou. E então com o ar mais normal deste mundo perguntaste-me, "queres saber aonde os teus pais passaram o fim de ano?"... tinhas passado a noite toda atrás deles para chatear. Não estudavas, não trabalhavas, mas estavas todos os dias 7.30 da manhã à porta de minha casa na tua mota, só para seguires o meu pai que me deixava no liceu e seguia para a repartição... eras mais um dos filhos do famoso pediatra... eras "aquele filho varrido" do senhor doutor. Voltaste para Luanda e eu voltei a adormecer.
Acho que ninguém me amou como tu. Ninguém mereceu mais o meu amor que tu... mas nunca mo disseste. E um amor que não se diz não existe. Rompeste relações com o teu melhor amigo porque nos apaixonámos e deves ter achado que era uma traição... achavas que ambos tínhamos obrigação de adivinhar o teu amor por mim e de o respeitar... ainda que o silêncio fosse a única forma que usavas para comunicar...
Quando me vim embora, Luanda estava em estado de sítio. Um amigo levou-me ao aeroporto, por ruas desertas porque havia recolher obrigatório. Decidiu ficar no aeroporto até de manhã quando acabasse o recolher obrigatório porque o meu voo estava previsto para as duas da manhã. E pelas 10 da noite, apareces tu, rompendo todas as regras, arriscando tudo para me veres uma última vez! Quis correr para ti, mas o Bernardes não deixou! Tu eras um escândalo em Luanda e nenhuma menina decente correria para os teus braços, pelo menos à frente dele, que era um homem feito e se sentia responsável por mim, já que estava sozinha em Luanda e era apenas uma menina de 16 anos... ficaste a observar-me de longe, seguiste-me com o teu olhar até à hora do embarque...
No ano seguinte, o telefone da casa da minha avó, aonde eu vivia em Lisboa, tocou. Atendi. Do outro lado apenas silêncio: mas eu sabia que eras tu. Marquei um encontro para o dia seguinte no Rossio. E tu apareceste! E foi a mesma estória... só que desta vez eu abracei-te com muita força, chorei no teu ombro e senti as tuas lágrimas na minha face... Foi a única vez que nos tocámos... não aconteceu mais nada, senão o silêncio de sempre... a minha vida estava virada do avesso, eu estava empenhada em varíadissimas causas, a liberdade irrompia pela cidade e perdi-te... para sempre.
Um dia destes vou procurar-te. Através de contactos de amigos pela Internet sei que vives no Alentejo, tal como um eremita, trabalhando apenas o suficiente para te manteres vivo e ires fumando os teus "charros". De algum modo deveria sentir-me culpada por estares assim? Não creio. Tu foste o único que seguiu a direito o caminho que traçou para si mesmo, depois de teres percebido que eu já tinha caminhos demais pela frente para seguir para um deserto onde só nós dois existíramos...
Fizeste bem Toy. Sabes? Um pode ser pouco, mas dois é demais! Um dia destes procuro-te e encontro-te para ouvir o teu silêncio...
Não consigo recordar o som da tua voz...

1 comentário:

Unknown disse...

Belo texto. O mais belo e melhor jque escreveste no blogue.Parabéns.