04 dezembro, 2006

Ode aos gatos

Os animais foram imperfeitos,
compridos de rabo,
tristes de cabeça.
Pouco a pouco se foram compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, vôo.

O gato,
só o gato apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento ao rato vivo,
da noite até seus olhos de ouro.

Não há unidade como ele,
não tem a lua nem a flor tal contextura:
é uma só coisa como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno firme e sutil
é como a linha da proa de um navio.

Seus olhos amarelos deixaram uma só ranhura
para jogar as moedas da noite.
Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão,
nupcial sultão do céu das telhas eróticas,
o vento do amor na intempérie reclamas
quando passas e pousas quatro pés delicados no solo,
cheirando, desconfiando de todo o terrestre,
porque tudo é imundo para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente da casa,
arrogante vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico e alheio,
profundíssimo gato, polícia secreta dos quartos,
insígnia de um desaparecido veludo,
seguramente não há enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti
e pertences ao habitante menos misterioso,
talvez todos o acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios de gatos,
companheiros, colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço ao gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica, o gineceu com seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.

Minha razão resvalou na sua indiferença,
o seu olho tem números de puro.

(Pablo Neruda)

1 comentário:

Unknown disse...

Concordo.
Hei-de falar sobre os gatos...
Eduardo Aleixo