28 novembro, 2006

... os olhos sem expressão sempre cruéis...


Coisa mais linda, coisa mais querida, coisa mais linda o retrato do meu irmão que uns senhores ricos e elegantes vieram aqui mostrar-me, ao sair para o quintal dei com eles a espreitar da cancela, quer dizer dois em pontinhas de pés e o outro, da minha idade, melhor vestido ainda, com um chapéu da época do meu pai mas de bom feltro, novo, um bocadinho atrás como se tomasse conta, eu com a lata do comer das galinhas e nem sequer arranjada, ponta aqui ponta ali a chamar pelos bichos batendo uma colher na lata, o automóvel dos senhores sobre o caminho de Évora porque sete da manhã e ninguém na rua tirando as árvores, o vento e essas sombras que ainda nã se transformaram em casas e muros e portanto deve ser verdade o que dizem na igreja, que o mundo começou com o escuro e depois veio a luz e trouxe as lagartixas, as pessoas e a terra, eu para ali a assistir juntamente com as galinhas excitadas pela colher na lata, a ferverem à minha volta de olhinhos cruéis
(não cruéis, sem expressão os olhos sem expressão sempre cruéis para mim)

(António Lobo Anunes, in " Ontem não te vi em Babilónia")

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