26 novembro, 2007

no comboio da linha de Cascais


é uma figura estranha de mulher, estranha na sua obesidade, no seu corpo mal feito, no cheiro que exala, mas sobretudo no sotaque e talvez na voz, ou são o sotaque e a voz que fazem dela aquele conjunto estranho de meio gente meio bicho e contudo o discurso mais ou menos coerente, vai perguntando a outra mulher atrás de mim se trabalha no Cais do Sodré e a outra que sim, depois pergunta se vive em Caxias e a outra que sim e ela explica que aquele comboio não pára em Caxias e portanto será necessário mudar em Algés e vai dizendo a propósito de nada, só porque lhe apetece suponho, o meu namorado já morreu e o meu pai também, morreu em Maio, de ataque de coração mas fico sem saber quem morreu do coração o pai ou o namorado porque ela vai ligando frases assim de um modo estranho como ela... quando a outra sai ela cala-se, portanto não é uma tonta, é alguém que não fala sozinho (como eu por exemplo) não definitivamente não é uma tonta, apenas uma pessoa bem estranha que fala muito alto com uma voz e um sotaque estranhos, que se percebe o que diz embora vá ligando assuntos que para mim não têm qualquer seguimento e volta atrás repete o meu namorado morreu e o meu pai também morreu em Maio... e eu penso que estou a ouvir um romance de António Lobo Antunes e penso se as suas personagens foram retiradas da vida real, foram com toda a certeza como a mulher que hoje animou o fim de tarde de pelo menos 40 pessoas numa carruagem de comboio da linha de Cascais...

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