09 outubro, 2007

Na casa de Irene


Eu sei que estás contente aí onde estás, embora com saudades do teu marido e do teu filho eu sei, agora estás sossegada, agora a dor partiu finalmente, deixou-te descansar essa dor que já não permitiam a que o teu marido assistisse, esse homem que te acompanhou toda a vida, com quem te entendias numa língua que não era a tua nem era a dele, porque nenhum dos dois sentiu necessidade nunca de aprender a língua do outro para dizer amo-te, qualquer língua servia e a nossa é para ele muito difícil e a dele é para ti muito difícil... e depois realmente digam o que disserem vocês não precisaram nunca de falar a mesma língua para saberem o que o outro queria e o que o outro queria era apenas ver-se como num espelho e saber que era feliz... e tu foste feliz durante muitos anos até que essa doença te apanhou, ninguém sabe muito bem quando, às vezes estranhava um certo desequilíbrio teu mas nunca dei muita importância, para dizer a verdade nunca dei importância nenhuma, habituei-me a ver-te assim só que de repente envelheceste 20 anos, de repente só a tua cabeça funcionava o teu corpo não obedecia por mais que quisesses, por mais que mandasses, o teu corpo a fazer o que queria como se tivesse vontade própria, qualquer coisa fora do normal porque o corpo tem como que um patrão a quem deve obedecer, o cérebro, toda a gente sabe não é novidade, mas para ti era novidade porque a pouco e pouco ele se foi negando a obedecer ao cérebro... e de repente a esperança, porque parece que há um medicamento que melhora as condições de vida das pessoas como tu e como o último Papa que sofrem de Parkinson... ainda passeaste com o teu marido muitos anos, mesmo em cadeira de rodas, ele levava-te de férias, incansável, até que também o corpo dele começou a ceder e teve que se separar de ti... não mais dormiste com ele, senão aqui há umas semanas quando te deixaram vir a casa, acho que para te despedires, para teres a certeza que a tua casa era ainda a mesma, para te certificares que o teu marido continuava lá e que nenhuma mulher a ocupar o teu lugar... nenhuma mulher Irene, como temias, garanto-te eu nenhuma mulher a ocupar o teu lugar.
Boa viagem.

1 comentário:

Bartolomeu disse...

Bela despedida Maria Eduarda, consciência de uma viagem interrompida, que no rodar incansável dos astros, se espera seja cumprida em breve, para a eternidade.