À minha frente, os livros acabados de reler, de Luís Sepúlveda, " Patagónia Express" e "Diário de um Killer Sentimental". Também sobre a mesa o livro, " Mulher em Branco", de Rodrigo Guedes de Carvalho. Começando pelo último - emprestado pela Eduarda - : mas que bela surpresa! Li-o de um fôlego, com o seguinte pensamento a intrometer-se intermitentemente na leitura: "quem pode imaginar, olhando para o rosto de alguém, que esse alguém pode escrever assim tão bem?!" Obedecendo a metodologia do autor ao " modelo" oficinal de António Lobo Antunes ( o que é, julgo, indiscutível), não os comparo, no entanto! Rodrigo é diferente ( somos afinal todos diferentes…). Acho que se não conhecesse Lobo Antunes e não tivesse tido o problema ( já resolvido ) de " aprender a lê-lo", mesmo assim… leria o Rodrigo com facilidade. É mais simples. É mais do meu gosto.
Escrevo sobre a mesa, dentro do telheiro aberto para o terreno onde estão as minhas árvores. Como o telheiro é aberto, tive de tapar todos os buracos junto ao tecto e aos beirais para impedir que a passarada, ao fazer os seus ninhos, me cague a mesa e o chão, transformando o espaço interior numa pocilga! Não me acusa a consciência: se querem fazer os ninhos, pois que os façam, mas lá fora: o "loureiro" afaga - como nos anos anteriores - um ninho de melros, já com criação. A "japoneira" esconde - como nos anos anteriores - um ninho, de não sei que pássaro, com quatro ovinhos ( um posto todos os dias em que por cá permaneci ).E dentro de um vaso, suspenso do beiral avançado, que faz protecção às fachada principal da casa, as " carriças", passarinhos canoros, de bico comprido, furaram a terra do vaso, construíram um túnel, e dele já voejam, encantados, filhos pequeninos… Luís Sepúlveda está em cima da mesa ( salvo seja), chateado:
« Que me interessam os ninhos se estou à espera de que fales dos meus livros, que acabaste de ler e que mencionaste, carago?»
« Quero dizer-te, em primeiro lugar, amigo, que, tal como tu, as minhas flores preferidas são as sardinheiras…»
Por esta resposta ele não esperava!Claro que lhe poderia ter dito também:
« Nem imaginas como te invejo!. Como, tendo tantas afinidades contigo, gostaria que a minha vida tivesse sido como a tua…»
Sepúlveda, lendo-me o pensamento, quis interromper-me, estendendo-me os braços, para passar-me a mão pelo pêlo, mas eu não deixei: « Sabes, gostei muito daquela frase do teu avô andaluz:
- Uma pessoa é … de onde melhor se sente…», atirei-lhe.
Ele ficou impressionado. Disse-me:
« Por que não foste à Patagónia, como me prometeste, em Barcelona? »
« Não me foi possível », respondi-lhe « A vida, quando cheguei de Barcelona, teve chatices, crispações …Mas sabes, para compensar a minha não ida à Patagónia, pus-me a reler o teu Patagónia Express. A verdade, Luís, é que me senti sempre tão bem no meio da tua gente, das paisagens que descreves tão fotograficamente, não só as exteriores, da Patagónia , da Amazónia, dos confins daquele continente de sonho, mas também as de dentro, dos sentimentos e da alma, com a fluência das palavras rápidas e claras, que fazes deslizar, como as águas claras de um rio…
Depois, sabes, ao ler-te, sobre os tempos trágicos do Chile de Allende, quando os nossos olhos e os nossos corações e as nossas bocas tinham o brilho intenso, o pulsar quente e as palavras convictas, como se o sonho parisse inevitavelmente a vida e a vida fosse como o sonho quente das palavras…»
« Estás a invocar magistralmente esses tempos, sim…», interrompeu Sepúlveda.
Prossegui: « Além do mais… identifico-me com a tua maneira de escrever e de ser e admiro a cultura dos povos que descreves.
Talvez seja um exagero dizer-te que seria assim que eu descreveria ( ou melhor, que eu gostaria de descrever ) , se tivesse seguido o mesmo destino que tu, a maneira de ser irónica e sábia do meu povo, rude, brejeira e tosca, mas doce, sincera, e sem malabarismos. Deixa-me também dizer-te que gosto do modo directo e belo como falas do amor, da morte, do mar e das estrelas…»
O meu amigo sorriu, encantado. Olhou para mim, depois para o relógio, deu um salto da mesa, bebeu o resto das cerveja, acariciou-me o rosto, e despediu-se:
« Fico então à espera que me envies uma crónica sobre o teu povo, de que tenho ouvido falar tanto. Se ele for como tu, é um povo do carago!…»
«És muito simpático,… Obrigado! »
«Temos de brindar ao Alentejo e ao amor, como fizemos em Barcelona, lembras-te? »
« Se me lembro! »
«Até admira, estavas tão bêbedo!..»
«E tu não estavas, meu sacana?!»
Mas ele já se tinha pisgado, dengoso, a rir, por entre as árvores…
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