31 agosto, 2006

Força estranha


(Para o Daniel que faz hoje 4 dias, Carla e João, com muito carinho)

Eu vi o menino correndo
Eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista
O tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão
Eu vi muitos homens brigando
Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada é o sol sobre a estrada é o sol
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
(Caetano Veloso)

30 agosto, 2006

Podia ter sido um dia feliz...


Podia ter sido um dia feliz. Podia... Agosto ajuda. Trabalhar nas calmas, apesar do stress da falta de pessoal... mas a tranquilidade do movimento lento, do trânsito quase inexistente, da praia ao fim do dia. Podia ser um dia feliz.
Podia... há sol e mar na minha vida. Praias com bandeira verde, para que eu possa nadar sem ser incomodada pelo nadador salvador (se bem que ele já me conhece e deixou de se preocupar comigo. Parece que já não pensa que eu quero ir para a América a nado...)
Como veêm o dia podia ter sido feliz... Nem faltaram os netos ao fim dia.
Podia mesmo ter sido um dia feliz...
Não fossem as notícias. Não fossem os telejornais. Não fossem as casas derrubadas.
E não me interessa saber se as pessoas que as ocupavam são ou não emigrantes clandestinos. Não me interessa! É gente. Gente na sua maioria trabalhadora que está no país há imensos anos. Gente humilde e pobre. Gente como eu, como tu que me lês...
Não me interessa saber se há ou não dinheiro para alojar essa gente. Se não há, esperassem que houvesse. O que é inadmíssivel é deixar as pessoas sem os seus poucos bens. Atirar para o lixo tudo o que lhes pertence, incluindo os documentos. Que raio de país socialista é este? Como é possível tratar pessoas desta maneira e impedir a comunicação social de fazer o seu trabalho?
Como é possível derrubar casas com gente lá dentro? Que país é este?
E a arquitecta Helena Roseta, com quem nem sempre concordo, mas que desta vez não podia ter senão o meu mais veemente apoio e solidariedade, que se ponha a pau, que pelo caminho que isto leva, ainda vai parar atrás das grades de Tires... Para já, o meu abraço para ela, que tem aquela capacidade e genica para liderar que julgo, todos lhe reconhecemos.

Não Enche


Me larga, não enche
Você não entende nada e eu não vou te fazer entender
Me encara, de frente
É que você nunca quis ver, não vai querer, nem vai ver
Meu lado, meu jeito,
O que eu herdei da minha gente e nunca posso perder
Me larga, não enche
Me deixa viver, me deixa viver, me deixa viver, me deixa viver
Cuidado, oxente !
Está no meu querer poder fazer você desabar
Do salto, nem tente
Manter as coisas como estão porque não dá, não vai dar
Quadrada, demente
A melodia do meu samba põe você no lugar
Me larga, não enche
Me deixa cantar, me deixa cantar, me deixa cantar, me deixa cantar
Eu vou
Clarificar
A minha voz
Gritando: nada mais de nós!
Mando meu bando anunciar
Vou me livrar de você
Harpia, aranha!
Sabedoria de rapina e de enredar, de enredar
Perua, piranha,
Minha energia é que mantém você suspensa no ar
Pra rua! se manda !Sai do meu sangue sanguessuga, que só sabe sugar
Pirata, malandra!
Me deixa gozar, me deixa gozar, me deixa gozar, me deixa gozar
Vagaba, vampira!
O velho esquema desmorona desta vez pra valer
Tarada, mesquinha!
pensa que é a dona e eu lhe pergunto:
quem lhe deu tanto axé?
À-toa, vadia!
Começa uma outra história aqui na luz deste dia "D"
Na boa, na minha,
Eu vou vivez dez,
Eu vou viver cem,
Eu vou vou viver mil,
Eu vou viver sem você.
Vagaba, vampira!
O velho esquema desmorona desta vez pra valer
Tarada, mesquinha!
pensa que é a dona e eu lhe pergunto:
quem lhe deu tanto axé?
À-toa, vadia!
Começa uma outra história aqui na luz deste dia D
Na boa, na minha,
Eu vou viver dez,
Eu vou viver cem,
Eu vou vou viver mil,
Eu vou viver sem você.
Eu vou viver sem você.
Na luz desse dia "D".
Eu vou viver sem você.

(Caetano Veloso)

29 agosto, 2006

Dormir


Dormir. Preciso dormir... 8, 10, 12, 24 horas... dormir sem sonhos nem pesadelos. Dormir e acordar porque dormi tudo... sem acordar ouvindo o meu grito.
Preciso dormir. E acordar sem frio. Acreditar que os termómetros indicam temperaturas altas. Não sentir este frio, que me vem de dentro, da alma... será medo? Será que o medo pode provocar frio? Só agora me ocorreu... estará relacionado? Tenho medo de adormecer porque tenho medo dos pesadelos... Tenho sono e não durmo, porque se adormeço, logo me acordo com um grito. Que só eu ouço... e que me fere os ouvidos e me obriga a tapar a cabeça com a almofada, ou a levantar-me e deambular pela casa, desejando intensamente fumar não um, mas vários cigarros...
Insisto em andar só. De carro, a pé, de comboio... não quero ter medo. Não posso deixar que o medo tome conta da minha vida... tento seguir como sempre...
A verdade é que preciso dormir... 8, 10, 12, 24 horas. Dormir para sempre... e acordar no planeta onde nasci. Que há quatro meses era um lugar seguro. Mas já não é. Não é!
Preciso mesmo de dormir... Dormir.

Terra


Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez as tais fotografias
Em que apareces inteira, porém lá não estava nua
E sim coberta de nuvens
Terra, Terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Ninguém supõe a morena dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba
Terra, Terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Eu estou apaixonado por uma menina terra
Signo de elemneto terra do mar se diz terra à vista
Terra para o pé firmeza terra para a mão carícia
Outros astros lhe são guia
Terra, Terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Eu sou um leão de fogo, sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente, e de nada valeria
Acontecer de eu ser gente, e gente é outra alegria
Diferente das estrelas
Terra, terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
De onde nem tempo e nem espaço, que a força mãe dê coragem
Pra gente te dar carinho, durante toda a viagem
Que realizas do nada,através do qual carregas
O nome da tua carne
Terra, terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Na sacadas dos sobrados, das cenas do salvador
Há lembranças de donzelas do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito
Terra, terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria
?

(Caetano Veloso)

28 agosto, 2006

Belo Belo



Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.

Não quero combater,
Não quero ser soldado.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

(Manuel Bandeira)

Grãos de areia


Nada está no seu lugar... não sei o que é feito de mim... perco-me... perco-me... perco-me. Os meus passos levam-me aonde a minha cabeça diz que não vá.
Sei que tenho que ficar só! sei! Sei que não mereço o afecto verdadeiro de ninguém. Os que tive, desperdicei.
Agora só faltava mesmo despedir-me dos lugares que amo. E das pessoas.
E sem dar por isso, aí estava eu, visitando os lugares da minha vida. Mas não fui capaz de me despedir de ninguém... porque não é a primeira vez que me encontro em lugares para onde fui empurrada, suponho que pelo subconsciente... a semana passada, senti a morte muito próxima... envolvente. Tive vontade de me despedir de toda a gente que amo, mas só falei nisso a uma amiga, porque ela ia de férias e eu não queria que ela fosse apanhada desprevenida na volta, no caso de me acontecer mesmo alguma coisa.
Só que no fundo, isto começa a tornar-se uma rotina. De vez em quando, deve ser do nível de stress, isto acontece-me. E tenho vontade de pedir perdão a toda a gente... mas não peço. Tenho vontade de beijar toda a gente... mas não beijo. Tenho vontade de abraçar toda a gente... mas não abraço... senão esta solidão que amo, que me tem acompanhado toda a vida... a minha mais fiel amiga, o meu mais fiel amor... a única amiga com quem sempre pude contar... o único amor que me acompanhará, quando de verdade me for.
Amanhã a vida recomeça... a rotina instala-se pouco a pouco, logo que termine este bendito mês de Agosto que me enche de traquilidade...
Quem não conseguiu entender o que eu aqui digo, não se incomode.É que estive mesmo a falar comigo!
Subo a escada? Desço a escada? No fundo trata-se apenas de pequenos grãos de areia...

27 agosto, 2006

O vôo 93



Vi o "United 93"... Bem feito, sem estrelas nem sentimentalismo. Acredito que tenha sido um vôo bem semelhante... o vôo 93. Não um vôo mas um pesadelo.
E é como eu sempre digo, o que tiver que ser, será... Há um passageiro que chega atrasado e consegue entar no avião à última da hora... "Consegui" é o que ele comenta para a hospedeira, feliz por ter conseguido chegar a tempo... Infelizmente não sabia que tinha conseguido apenas, entrar no avião com destino à morte.

Homens


Homens,
gosto de todos,
dos morenos, dos mulatos,
dos branquinhos , dos loirinhos e dos crioulos.
só tem que ser homem.
tem homem corno, homem baixo, homem gordo,
homem ingrato, safado, careca, cabeludo,
veado , ousado, temido...
tem muito homem....
todo homem que se preza tem que impor respeito,
saber ouvir, falar, escutar, ter dinheiro, celular,
ser bom de cama, e te respeitar...
se o homem não tiver nenhuma dessas virtudes,
saia de perto e tome uma atitude.
porque o verdadeiro homem,
ele te ama, te ama,
te trata, te trata,
com carinho
com respeito
e amor,
e vai te dar por toda vida grandes felicidades,
serão felizes,
este é o homem de verdade...
homens,
gosto de todos, dos morenos, dos mulatos,
dos branquinhos, dos loirinhos e dos crioulos,...
só tem que ser homem...
(Manu Chau)

Ainda bem que o Afonso foi trabalhar!


Estava eu muito sossegadinha, quase, quase dormindo, e uso o gerúndio porque é o tempo adequado para o mês de Agosto, estendida na areia, ouvindo música bem baixo, para poder ouvir simultaneamente o suave marulhar das ondas, quando ouço um grito... "Afonso, ainda bem que vieste! Sentia-me tão sózinha... ainda bem que vieste trabalhar! Vou já buscar as minhas coisas para aqui!"
Interrompido o meu sossego, soergui-me na toalha e percebi que o Afonso é o nadador salvador da praia que frequento, a quem costumo cumprimentar com um bom dia, mas que não fazia a mínima ideia que se chamasse Afonso, até porque o homem é espanhol, e segundo já me contou tem andado um bom bocado por esse mundo fora, tendo vindo do México quando chegou a Portugal.
À senhora desesperada de solidão, nunca tinha visto por ali. Tem concerteza mais de 50 anos e é uma mulher ainda interessante. Daquelas que não percebemos porque está tão só, se pelos vistos, tudo o que não quer é estar só.
Porque só está só quem quer... Eu pelo menos sou constantemente incomodada por gente que não gosta de estar só e acha que tenho que os aturar, que ouvir as suas estórias, mesmo que sejam estórias mal contadas, sem convicção e por isso sem interesse.
A verdade é que o Afonso continuou na palheta com o sujeito com quem estava, depois foi fazer o seu trabalho e a nossa solitária lá ficou... pelos vistos basta-lhe saber que o Afonso está presente! Pelos vistos não descobriu ainda que a pior forma de estar só é estar com alguém que nos faz sentir a solidão como um fardo... Porque quando se está só por opção, a solidão é uma benção que se preserva e não um fardo...
Mas, assim como assim, ainda bem que o Afonso foi trabalhar!

26 agosto, 2006

Testamento


À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
(Alda Lara)

Quantas madrugadas tem a noite


é o título do romance de Ondjaki que acabo de ler. E não fiquei surpeendida por ter gostado tanto, uma vez que já tinha lido uma novela (O Assobiador) e um livro de contos (E se amanhã o Medo) deste jovem angolano que nasceu com tinta nas veias.
Este primeiro romance de Ondjaki que leio, é realmente um romance angolano. Quer na linguagem, quer na forma.
O nome do personagem principal "AdolfoDido" diz-nos desde logo quase tudo.
E depois uma estória construída com personagens como um anão de nome BurkinaFaçam, que vive dos esquemas tradicionais e rodeado de duas putas de nome Eva e Madalena... um albino que é um honesto professor de nome Jaí, uma senhora de quem se fala sempre como a Kota das Abelhas e que assassinou a abelha raínha e tomou o seu lugar, e acaba por tomar lugar também no coração do albino, mais o puto PCG (Pisa com gêto) que é adotado pelo anão por uns dias, depois de o ter atropelado, e que vive no Castelo por opção, (nome dado às casas onde vivem os meninos de rua em Luanda), apesar de ter família, só podia ser escrito por um caluanda.
Uma estória que é contada por um morto (que seria o primeiro com estatuto de ex-combatente, embora nem sequer tivesse idade para o ser), que voltou à vida e deixa de queixo caído as suas duas viúvas DonaDivina e a KiBebucha, que pretendiam (ambas) ser consideradas a "primeira viúva do estado".
Tudo neste romamnce está tão bem orquestrado, tão bem escrito, tão bem contado, que tudo o que posso dizer é parabéns ao jovem Ondjaki e recomendar a todos que leiam este romance fantástico que pode parecer um pouco difícil por causa da linguagem desconhecida da maior parte dos "tugas" mas que acaba por ser descodificada rápidamente sem "makas".
E aqui fica o provérbio kimbundu que abre o cápítulo "Morte matada, de cão":
Múkua-kâfua ûfua, o kâfua ne kâbune (Tem que morrer o defeituoso, para que o defeito acabe)

25 agosto, 2006

O Manel de Serpins


Não tenho terra. Quer dizer: não tenho terra para ir como as outras pessoas. Nunca digo "vou à terra" ou "vou à aldeia".
A minha terra é o mundo. Há muitos anos que é assim. Sinto-me um pouco apátrida e nem as emoções dos mundiais e europeus de futebol, me fazem acenar bandeiras. Também não costumo cantar o hino, embora, ao contrário da maioria dos portugueses o saiba. Mas não acho que seja bonito. Acho sobretudo que está completamente desactualizado. Há muito que deixámos de ser heróis do que quer que seja, menos ainda do mar.
Por isso acho bonito ver um aldeão, que se licenciou e continua a ser aldeão. Com tudo o que isso acarreta de bom e mau. Um aldeão em Lisboa, julgando que é um cidadão... mas afinal é apenas um aldeão. Que gosto de ouvir falar quando não pretende ser mais do que um aldeão. Que me ensina muitas coisas enquanto aldeão. Mas que se torna insuportavel quando vira doutor. Em leis ainda por cima!
Isto para dizer que aprecio realmente a cultura e tradições do povo português, embora não conheça muito, uma vez que se trata de uma área tão vasta que o resto da vida, por muito longa que ela fosse, não me chegaria para saber nem a metade... Mas não me consigo identificar com estes emigrantes portugueses que escolheram as cidades grandes para viver.
Ouço as estórias da aldeia e invejo-os. Porque eu não tenho uma aldeia a que voltar. Tudo o que eu teria se quisesse voltar aos lugares da minha infância, seriam matas minadas... e uma bela cidade, a abarrotar de lixo e gente aos milhões, vivendo de expedientes, de mentiras, de sacanagem....E embora tenha mais de mil estórias para contar, os lugares já não existem como eram, há muito tempo... Enquanto que o aldeão de que falo, ainda consegue identificar cada árvore, cada casa, cada caminho da sua infância...
E quando alguém quer falar com ele para o local de trabalho, explica com quem quer falar mais ou menos assim: "Eu queria falar com o Manel". "Mas Manuel de quê?". "Ora menina, aquele pequeno de Serpins!"

Essa moça tá diferente


Essa moça tá diferente
Já não me conhece mais
Está pra lá de pra frente
Está me passando pra trás
Essa moça tá decidida
A se supermodernizar
Ela só samba escondida
Que é pra ninguém reparar
Eu cultivo rosas e rimas
Achando que é muito bom
Ela me olha de cima
E vai desinventar o som
Faço-lhe um concerto de flauta
E não lhe desperto emoção
Ela quer ver o astronauta
Descer na televisão
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Que ela só me guarda despeito
Que ela só me guarda desdém
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Se do lado esquerdo do peito
No fundo, ela ainda me quer bem
Essa moça é a tal da janela
Que eu me cansei de cantar
E agora está só na dela
Botando só pra quebrar
(Chico Buarque)

24 agosto, 2006

Até que Plutão se reencontre!


Hoje o sistema solar "encolheu". Aprendi a papaguear os nomes de nove planetas e agora, sem mais aquelas, os senhores cientistas reúnem e decidem que aprendi errado. Eu e quantos milhões de pessoas mais em todo o mundo?
Não acho bem. Sinto-me roubada por Plutão. Durante 40 anos ocupou um espaço na minha memória a que afinal não tinha direito... E agora? A quem vamos pedir explicações e indemnizações? Sim, porque temos que ser alvo de reparações por parte de quem de direito! Talvez os respectivos Estados... ou o país de onde é natural a "besta" que incluiu Plutão no sistema solar e nos andou a enganar mais de 500 anos: a Polónia. Sim. Devemos constituir uma associação e reivindicar os nossos direitos.
Mais: Plutão é ainda mais vítima do que nós. Estava convencido que era alguém, enfim um planeta sempre é um planeta... e agora passa a quê? Cometa?
Devemos pois unir-nos também em torno do pobre Plutão, arranjar-lhe uma equipa de psicólogos e psiquiatras para que possa ultrapassar esta crise de identidade, que este trauma sem dúvida lhe causa.
A luta continua! Até que sejamos ressarcidos de todos os danos! Até que Plutão se reencontre.

O Rio


(para o Pedro e Pablo com amor)
Ouve o barulho do rio, meu filho
Deixa esse som te embalar
As folhas que caem no rio, meu filho
Terminam nas águas do mar
Quando amanhã por acaso faltar
Uma alegria no seu coração
Lembra do som dessas águas de lá
Faz desse rio a sua oração
Lembra, meu filho, passou, passará
Essa certeza, a ciência nos dá
Que vai chover quando o sol se cansar
Para que flores não faltem
Para que flores não faltem jamais
(Seu Jorge, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Marisa Monte)

23 agosto, 2006

Começar de novo


Começar de novo
E contar comigo,
Vai valer a pena
Ter amanhecido.
Ter me rebelado,
Ter me debatido.
Ter me machucado,
Ter sobrevivido.
Ter virado a mesa,
Ter me conhecido.
Ter virado o barco,
Ter me socorrido.
Começar de novo
E contar comigo,
Vai valer a pena
Ter amanhecido.
Sem as suas garras,
Sempre tão seguras.
Sem o teu fantasma,
Sem tua moldura.
Sem suas escoras,
Sem o teu domínio.
Sem tuas esporas,
Sem o teu fascínio.
Começar de novo,
E contar comigo,
Vai valer a pena
Já ter te esquecido.
Começar de novo...
(Ivan Lins/Victor Martins)

O Casamento dos Pequenos Burgueses


Ele faz o noivo correto
E ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequieto
E ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completo
E ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianureto
E ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias
Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do neto
E ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una

(Chico Buarque)

Consultório sentimental


Casamento é coisa séria. Claro que sim. E divórcio é ainda mais sério. Casamento geralmente dá alegria. Divórcio dá dor, mágoa, raiva... e às vezes uma alegria imensa e um alívio do caraças.
Não tive festa de casamento e não tenho pena. Não tenho uma única fotografia do meu casamento. E não tenho pena. Porque o meu casamento não foi bom nem foi mau. Foi. Pelo menos naquilo de que me consigo recordar. Talvez não tivesse sido um casamento e nós julgássemos que era... talvez. Para ser sincera não me lembro bem. A minha memória selectiva apaga tudo o que é ruim e só deixa que fiquem as coisas que me fazem bem, as pessoas que me quiseram bem... e o que resta não é igual a zero. É muito bom.
O divórcio... ah se fosse hoje teria feito uma festa! De arromba. Porque o alívio de me recuperar foi tão grande que se fosse hoje eu não teria perdido tempo a desgastar-me com mágoas e dores. Até porque não havia razão para mágoas nem dores. No fim eu conseguira finalmente o que levei práticamente todo o tempo do meu casamento a exigir. E depois deu-me uma prática que nem vos conto!
Cada separação que se seguiu foi menos dolorosa que a anterior. Hoje já nada me dói. Entro e saio de uma relação da mesma maneira: de coração aberto, sem esperar nada, dando tudo de mim. É bom enquanto dura e depois continua a ser bom, porque não há mágoa, nem dor, nem raiva... nada. Apenas uma pontinha de saudade quando recordo os bons momentos. Os maus são apagados.
Vem isto a propósito de ter ouvido uma mulher confessar-me de lágrimas nos olhos, que ama tanto o marido que se ele a deixasse ela não saberia o que fazer da vida. Acho que se isso lhe acontecesse (e espero, sinceramente que não aconteça, porque se há coisa que me deixa feliz é um casamento feliz, passe a redundância ), ela acharia uma saída, como quase todas as pesoas, sejam homens ou mulheres, acham. E talvez se acostumasse tanto com a solidão que não mais quisesse repartir os seus silêncios, pensamentos, tristezas e alegrias com alguém especial.
O casamento é uma coisa tão séria, mas tão séria que só se deve cometer uma vez. Se dá certo, óptimo, é para o resto da vida. Se não dá, o mais provavel é que haja falta de vocação. E vocação não se compra, nem se adquire. Então mais vale ir namorando, se apaixonando, sem esperar nada em troca. Para não ter desilusões...

22 agosto, 2006

Mulheres de Atenas


Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quandos eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenasHelenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas

(Chico Buarque/Augusto Boal)

Coisas...


Se a estória não me tivesse sido contada por pessoa de inteira confiança, julgaria que era coisa antiga ou inventada, ou passada num qualquer país africano ou asiático, daqueles em que não existem direitos para as mulheres, porque as mulheres não existem: são fábricas de gente, depois passam a ser coisas e pronto!
Mas a estória passou-se há pouco em Portugal, mais precisamente em Trás-os-Montes. E é como se segue.
Um homem disse à sua mulher que precisava que ela fosse com ele à cidade para assinar uns papéis no Notário. Foram... Chegados ao Notário que afinal era uma Notária, a mesma perguntou à senhora se sabia o que estava a assinar. Ela respondeu que se o marido lhe tinha dito para assinar ela assinava. A Notária pediu ao senhor que se retirasse por momentos e explicou à senhora que os papéis eram para o divórcio e, se mesmo assim ela estava de acordo em assinar. A senhora respondeu de novo que sim, se o marido lhe tinha dito para assinar ela assinava. E assinou!
Voltaram para casa. Ela fez o jantar e enquanto toda a família se sentava para jantar ela atirou-se ao poço que existe no quintal da casa...
Passou-se em Portugal, um país democrático, onde os Direitos Humanos são reconhecidos. No século XXI. As mulheres objecto existem no nosso país, em maior número do que imaginamos. Coisas...

21 agosto, 2006

As Atrizes


Naturalmente
ela sorria
Mas não me dava trela
Trocava a roupa
Na minha frente
E ia bailar sem mais aquela
Escolhia qualquer um
Lançava olhares
Debaixo do meu nariz
Dançava colada
Em novos pares
Com um pé atrás
Com um pé a fim
Surgiram outras
Naturalmente
Sem nem olhar a minha cara
Tomavam banho
Na minha frente
Para sair com outro cara
Porém nunca me importei
Com tais amantes
Os meus olhos infantis
Só cuidavam delas
Corpos errantes
Peitinhos assaz
Bundinhas assim
Com tantos filmes
Na minha mente
É natural que toda atriz
Presentemente represente
Muito para mim
(Chico Buarque)

Jogando conversa fora...


Podia falar hoje de um dúzia de coisas que marcam a actualidade. Podia. Só que não me apetece. E é por isso que vou falar de música e músicos brasileiros, sobretudo de Francisco Buarque de Holanda, esse senhor que está mais velho, mais grisalho e mais bonito a cada dia!
Um dia destes postei aqui "Notícia de Jornal" e o meu querido Eduardo Aleixo, veio brindar-nos com um belíssimo poema de Manuel Bandeira que ele julga ter inspirado o Chico e que tem o mesmo nome.
Talvez tenha razão. No entanto, quero aproveitar para vos contar uma parte da história do Chico e de outros famosos da MPB. Consta da "Verdade Tropical" de Caetano Veloso.
Nos anos 60, quando estes músicos eram apenas uns meninos, querendo vencer no mundo da música, havia um concurso de televisão, salvo erro da TUPI, que consistia em dar uma frase musical ao concorrente e fazer com que ele cantasse a música toda. O prémio para o vencedor era um "carocha" e o concurso era semanal.
Pois estes nossos artistas, porque são verdadeiros artistas, concorriam com frequencia e ganharam o pão nosso de cada dia, durante algum tempo ganhando e vendendo os "carochas" .
Segundo Caetano, Chico foi quem mais ganhou, embora fosse o que menos sabia:davam-lhe a frase e ele não sabia a música mas improvisava logo ali uma canção, de tal forma que as pessoas acreditavam que a canção existia antes. Mais: ainda segundo Caetano, Chico chegava a inventar canções com "sabor a anos 20 e 30".
Não me admira que Manuel Bandeira tenha de alguma forma influenciado o poema de Chico. Mas a verdade é que quem escreve por encomenda com a facilidade com que ele escreveu tantas composições, pode perfeitamente ter escrito a sua "Notícia de Jornal" baseado em notícia que tenha lido... de qualquer modo vou fazer o que puder para investigar e, se conseguir apurar factos, dos mesmos aqui, vos darei conta. (E esta, hein? Será que ela virou investigadora policial, detective....)
Pois nem ele mesmo sabia que para além do mais, ainda viria a escrever romances bem interessantes. Gostei do "Estorvo", mas gosto especialmente de "Budapeste". Confesso que não gostei de "Benjamim". Mas "Budapeste" é de tal modo bem imaginado e construído que faz de Chico um escritor de romances. Sem dúvida!
E a 3 de Novembro, lá estarei, no Coliseu de Lisboa para ouvir "As atrizes" e todas as obras primas que nos quiseres oferecer. Amo-te Chico. Acho que já te tinha dito, mas eu sei que é daquelas coisas que ouvimos sempre com muito prazer...

20 agosto, 2006

Clandestino


solo voy con mi pena
sola va mi condena
correr es mi destino
para burlar la ley
perdido en el corazon
de la grande babylon
me dicen el clandestino
por no llevar papel
pa una ciudad del norte
yo me fui a trabajar
mi vida la deje
entre ceuta y gibraltar
soy una raya en el mar
fantasma en la ciudad
mi vida va prohibida
dice la autoridad
solo voy con mi pena
sola va mi condena
correr es mi destino
por no llevar papel
perdido en el corazon
de la grande babylon
me dicen el clandestino
yo soy el quiebra ley
mano negra clandestina
peruano clandestino
africano clandestino
marijuana ilegal
solo voy con mi pena
sola ca mi condena
correr es mi destino
para burlar la ley
perdido en el corazon
de la grande babylon
me dicen el clandestino
por no llevar papel
(Manu Chao)

Clandestinos do sonho


Chegam às centenas, todos os dias, principalmente a Espanha e Itália. Querem trocar África pela Europa. Trocar a fome africana pelo "sonho europeu".
E morrem às centenas todos os dias, na tentativa de concretizar um sonho que mais não é do que uma quimera. Depressa percebem que a Europa não é um sonho e que a fome em África é preferível aos caixotes de lixo europeus. É pelo menos mais saudável.
Zapatero tem razão. É preciso qua a UE faça um esforço verdadeiro para resolver este problema. A Europa não tem capacidade para absrorver toda esta gente, sem habilitações nem qualificações. Vemo-los por essa Europa fora tentando viver da venda de artesanato africano. Ou explorados na construção civil, tratados abaixo de cão de rua. Porque esses pelo menos têm a rua para vadiar e estes desgraçados estão muitas vezes reféns da sua situação de clandestinos.
Mas também não pode, pura e simplesmente, mandá-los de volta e "lavar as mãos" como Pilatos.
Este é um verdadeiro desafio para a UE. A ver vamos do que somos capazes...

Mora na Filosofia


Eu vou te dar a decisão
Botei na balança
E você não pesou
Botei na peneira
E você não passou
Mora na filosofia
Pra que rimar amor e dor
Se seu corpo ficasse marcado
Por lábios ou mãos carinhosas
Eu saberia, ora vai mulher,
A quantos você pertencia
Não vou me preocupar em ver
Seu caso não é de ver pra crer
Tá na cara

(Caetano Veloso)

Viva o Verão!


Eu sei que foram poucos os dias menos bonitos, que vivemos na passada semana. E também sei que eram necessários e que foram preciosos para as corporações de bombeiros, deste nosso país cada vez mais devastado pelo fogo...
Mas a verdade é que eu gosto de calor. Gosto do Sol. Se algum dia eleger um deus a quem homenagear será com toda a certeza o Sol. Mas a minha religião será em francês para conseguir um casal heterosexual... casarei pois "le soleil avec la mer". Não por ter o que quer que seja contra a homosexualidade, mas porque o mundo é feito da dualidade homem/mulher, e assim não faria qualquer sentido ter um só deus. Mais uma pagã!
Pois tudo isto só para dizer que tive uma manhã perfeita de praia. Uma combinação perfeita de céu limpo, calor suficiente, temperatura da água também suficiente para nadar, água (gosto da maré cheia) e pouca gente ao meu redor. Sobretudo nenhum daqueles chatos(as) que colocam a toalha quase em cima da nossa, quando a praia está quase deserta. Pois... até nisso foi perfeito: não apareceu nenhum daqueles tipos que gosta de viver aconchegadinho.
É o tão temido aquecimento global. Sei que vão ficar com os cabelos em pé... mas para mim tudo tem um lado bom. Até o aquecimento global do planeta. De há dois anos para cá não preciso de sair de casa para encontrar praias com tempertura de água em que eu consiga nadar. Este ano nadei o ano todo, sem ter que rumar mais a sul a oeste, ou a África...
Bem sei que a coisa vai ter que ser parada, mesmo contra a vontade do meu Bush de estimação. Senão como é que os meus netos vão viver quando chegarem à minha idade?
Mas por agora: Viva o Verão!

19 agosto, 2006

Canto Moço


( A pensar em Sérgio Vieira de Melo)

Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de manhã clara
Lá do cimo de uma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira
Mensageira pomba chamada
Mensageira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo de uma montanha
Onde o vento cortou amarras
Largaremos p'la noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca, brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca.
(José Afonso)

Para que a história não se repita.


Não gosto de efemérides. Mas de vez em quando convém lembrar... para evitar que a História se repita, embora saibamos que se repete sempre. É inevitável!
Faz 3 anos que foi morto em Bagdad Sérgio Vieira de Melo. Foi apenas mais uma das vítimas de uma guerra estúpida que não tem fim à vista. Quando começou falava-se em uma guerra de dias. A verdade é que o mortícinio no Iraque é diário. Os telejornais já nem se dão ao trabalho de noticiar. Na verdade deixou de ser notícia.
Só que Sérgio Vieira de Melo era um alto funcionário das Nações Unidas. Toda a sua vida foi construída em prole da paz. Era um homem bom. E a sua morte não foi noticiada como mais um número. Nem podia, sendo um homem que tudo fez em prole da Paz e dos Direitos Humanos, não apenas no Iraque aonde acabou por ser morto, mas por todo o Mundo, onde quer que fosse preciso. Era dos que dizia sempre PRESENTE.
Convém pois lembrar que não há guerras justas. Que não há guerra sem sofrimento. Que os mais fracos são sempre os mais atingidos.
Que a morte deste homem bom, sirva para abrir os corações de quem teima em querer o petróleo que não tem, pelas armas. É que não há nada, NADA que valha uma vida como a Sérgio Vieira de Melo.

O Dia da Criação

(Para ler em voz alta, recitando mesmo)
Macho e fêmea os criou.Gênese, 1, 27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no
Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.
(Vinicius de Morais)